6:41O presente modifica o passado (final)

Por Ivan Schmidt 

A propósito dos apontamentos da semana passada sobre o escritor russo dissidente Ievguêni Zamiátin (1844-1937), que obteve licença para se transferir para Paris onde faleceu, há múltiplos exemplos de implacável perseguição a intelectuais que ousavam discordar, mesmo que levemente, do ditado centralista.

Um deles foi o poeta e ensaísta Joseph Brodski, ganhador do Nobel de Literatura em 1987 pelo conjunto da obra, nascido em 1940 e banido para os Estados Unidos em 1972. Nascido em São Petersburgo, que assim como muitos outros conterrâneos carinhosamente chamava de “Peter”, Brodski começou a publicar seus primeiros poemas em 1958 em revistas clandestinas, logo atraindo a atenção dos censores e a perseguição policial. Foi preso algumas vezes até ser expulso definitivamente da União Soviética 15 anos depois.

Ele abandonou a escola ainda na adolescência e conseguiu emprego numa fábrica de implementos agrícolas para ajudar a família, pois o pai ganhava pouco. Poucos anos depois da morte de Zamiátin, o jovem poeta também sentiu na carne os efeitos deletérios da perseguição imposta aos que tinham coragem para exercer a liberdade de expressão, algo impensável no período em que o stalinismo sufocava quaisquer manifestações mais ousadas de jornalistas, artistas, poetas e escritores.

No livro memorialístico por excelência, Menos que um (Companhia das Letras, SP, 1994), publicado originalmente em Nova York em 1986 e traduzido para o português por Sérgio Flaksman, Brodski revela que “pelo que me lembro do momento em que deixei a escola aos quinze anos, este gesto foi antes uma reação instintiva do que uma escolha consciente. Eu simplesmente não era capaz de suportar certos rostos de minha turma – de alguns de meus colegas, mas sobretudo dos professores”.

Bem cedo o jovem revoltado conheceu as agruras da prisão, sobre ela expressando-se de forma aberta: “As únicas pessoas que eu não conseguia justificar de modo algum eram as que governavam o país, talvez porque nunca tenha me aproximado de nenhuma delas. Em matéria de inimigos, quem está numa cela precisa enfrentar o mais imediato de todos: a falta de espaço. A fórmula da prisão é a escassez de espaço contrabalançada por um excesso de tempo”, escreveu com argúcia para sublinhar que “é isto o que realmente incomoda, e o que não se tem como superar. A prisão é uma falta de alternativas, e é a previsibilidade telescópica do futuro que leva os prisioneiros à loucura”.

Brodski lembra que começou a desprezar os mandamentos da Revolução ainda menino, na escola, ao descrever a onipresença da imagem de Lenin que “assolava praticamente todos os livros escolares, todas as paredes das salas de aula, todos os selos, todas as notas e moedas, e mais tantas coisas retratando esse homem em várias idades e em várias fases da vida”.

Na verdade, pode-se concluir que o culto à personalidade anos depois elevado à enésima potência por Stalin, foi iniciado antes pelos bajuladores de Lenin.

“Havia Lenin bebê, parecendo um querubim com seus cachos louros. Depois, Lenin aos vinte e aos trinta anos, calvo e tenso, com aquela expressão vazia em seu rosto que poderia ser tomada por qualquer coisa, preferivelmente certo sentido de determinação. De certa forma, esse rosto persegue todo russo, e sugere uma espécie de padrão para a aparência humana, pelo fato de ser totalmente desprovido de um caráter determinado. (Talvez por não haver nada de especial naquele rosto, ele sugere muitas possibilidades). Depois vinha um Lenin mais velho, mais careca, com sua barba em ponta e seu terno escuro com colete, às vezes sorrindo, mas quase sempre dirigindo-se às ‘massas’ do alto de um carro blindado ou do pódio de algum congresso do Partido, com uma das mãos estendidas no ar”, acrescentou com uma convicção que certamente aumentou o ódio dos comunistas radicais.

Como o pensamento que vem a seguir: “Havia também as variantes: Lenin de boné de operário com um cravo preso na lapela; de sobretudo, sentado em seu gabinete, escrevendo ou lendo; sentado num toco de árvore à beira de um lago, escrevendo suas Teses de Abril, ou alguma outra besteira ao ar livre. Por fim, Lenin usando uma túnica paramilitar num banco de jardim, ao lado de Stalin, que era o único homem capaz de ultrapassar Lenin em matéria de ubiquidade de sua imagem impressa”.

Zamiátin não sobreviveu para testemunhar o pináculo do obscurantismo e da crassa intolerância (morreu em 1937), quando o czar vermelho iniciava sua escalada ao poder absoluto sobre os destinos da União Soviética. Contudo, Joseph Brodski, Andrei Sakarov, Boris Pasternak, Ossip Mandelstan, Ana Akmátova – entre muitos outros pensadores – mesmo enfrentando a proibição de expor o pensamento e a despeito dos riscos de prisão, banimento e a quintessência da maldade na forma dos atestados de doenças psiquiátricas, legaram à posteridade o retrato irretocável da nação escravizada.

E após esse introito que ilumina o contexto analisado é tempo de retornar a Zamiátin, Aldous Huxley, George Orwell e Anthony Burgess, autores das distopias Nós, Admirável mundo novo, 1984, 1985 e Laranja mecânica.

Tudo principia, a rigor, com o livro do russo escrito por volta de 1923, assim resumido por Burgess: “Não é um livro sobre a Rússia; na verdade, ele não retrata, nem indiretamente, qualquer sistema político existente, mas muitos recusaram-se a publicá-lo sob a alegação de que era ideologicamente perigoso. E, apesar do tom exageradamente fantástico e dos cenários totalmente desconhecidos, podemos entender a razão dessa recusa. Estamos no século 26, numa utopia cujos cidadãos perderam tão completamente a individualidade que são identificados apenas por seus números. Usam uniformes e não são chamados seres humanos”.

Preso pelo governo czarista em 1906, Burgess lembra que Zamiátin “foi novamente encarcerado numa cela, no mesmo corredor da mesma prisão, pelos bolcheviques, em 1922”, quem sabe por ser adversário de quase todas as formas de governo, preferindo um tipo de anarquismo primitivo: “O título do livro parece ser uma alusão a um lema criado por Bakunin, o pai do anarquismo: ‘Eu não quero ser Eu, eu quero ser Nós’, o que aparentemente significa que a antítese de um poderoso Estado centralizado não é o indivíduo, mas a comunidade anárquica e livre”.

O Estado Único, na concepção extremada de Zamiátin, estipulava que seus componentes vivessem em casas de vidro para que a Polícia do Estado “possa mais facilmente vigiá-los”. Não há casamento, mas o sexo é permitido a intervalos regulares. A observação de Burgess é risível: “Durante essas horas de sexo as cortinas dos apartamentos podem ser fechadas. Há um talão de racionamento de sexo, com cartões cor-de-rosa; o parceiro escolhido tem apenas que assinar o canhoto”.

Derivado de Nós, o romance futurista de Orwell, quem sugere é Anthony Burgess, “representa o estabelecimento de um tipo de autoridade tão segura de sua própria força, que pode dar-se ao luxo de praticar o mal pelo mal – o que significa que pode reduzir homens e mulheres à condição de criaturas sub-humanas e balbuciantes, gritando sob tortura – tudo isto feito de forma lenta, deliberada e sistemática. Esta é a cacotopia definitiva, que a Alemanha nazista, a Rússia soviética e mais um punhado de pequenas autocracias tentaram criar, sem jamais consegui-lo”.

Burgess também constatou que “Orwell parecia acreditar que, diferente daquele mundo criado por sua imaginação febril e doentia, o mundo real caminhava em direção a cacotopias ainda maiores e piores. Os Estados tornar-se-iam cada vez mais fortes e poderosos. Equipados com as mais diabólicas formas e tecnologias de opressão, acabariam por reduzir o homem à condição de um humanoide balbuciante. O futuro presenciaria uma disputa desigual entre o homem e o Estado e a derrota do homem seria humilhante e total. Cabe-nos agora ver se esta profecia está sendo cumprida”.

O desafio fica para o leitor eventual, acrescido da seguinte questão: É por acaso de seu conhecimento a existência de um país abaixo da linha do Equador, que se caracterize nesse tempo pelo uso abusivo da novilíngua e do duplipensar? Que tenha algum rival (a Venezuela não vale) na insurreição completa do significado de ideias e palavras?

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4 ideias sobre “O presente modifica o passado (final)

  1. Jose

    Também não conheço ele silvestre, mas se for parecido com o falecido Costinha é parecido com você, se bem que você não tem a menor graça…rsrsrsrs

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