16:29CRUZ DE CINZAS

de José Maria Correia

E essa cruz de cinzas que em meu rosto de criança marcaram na Catedral de sombras e se fez eterna.
E esse silêncio dos tambores que me assusta e faz calar os pássaros noturnos.
E as luzes das velas de cera a derreter em castiçais de prata sobre a memória de meus mortos imortais.
E os círios e cravos sobre os joelhos do crucificado de porcelana com olhos de vidro mareados de desespero.
E os sonhos antigos, todos os que me roubaram e estavam guardados escondidos no baú das cartas românticas .
As que nunca foram enviadas e nem destino tinham.
E as poesias rapidamente apagadas de meu pobre quadro de giz e ocultas de vergonha entre indecifradas equações de matemática .
E o inventário feito de todas as noites de insônia das milhares de estrelas desaparecidas e submersas em algum oceano perdido.
Onde estará então o mapa do rumo perdido e infinito de minha alma ?
O que nunca consegui desenhar.
E a madrugada que tanto anseio e teima em não raiar, sem o canto dos galos ou o badalar dos sinos que venham em meu socorro .
E que não chega nunca para me resgatar das trevas da agonia da noite e dos delírios sombrios que me perseguem e desassossegam em sonhos estranhos e mensagens que não entendo.
Levado que sou nesses delírios por meus passos perdidos em direção ao nada e que terminam sempre em angústia na alameda dos anjos de faces de bronze, tombados no orvalho dos paralelepípedos entre as muitas capelas que me aguardam de portas entreabertas e já me são familiares – e entretanto ainda me tardo.
Distraído por minhas trêmulas mãos que insistem dramáticas em redesenhar as letras, os sinais e os códigos da passagem definitiva, certa e adiada.
E a cruz de cinzas marcada em meu rosto que já não distingo e não se apaga jamais.

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