8:34Adeus a um bravo

por Célio Heitor Guimarães

“E assim é que o Alto Comando Revolucionário, sentindo que suas raízes não são profundas, impotente para realizar alguma coisa de útil à Nação – pois tirante a deposição do Sr. João Goulart não há conteúdo nem forma no movimento militar – optou pela tirania. Lendo o preâmbulo do Ato tive repugnância pelos seus redatores. Mas tive de sorrir ante a dificuldade com que o Alto Comando se deparou: ‘promulgava’ ou ‘dava’ um Ato Institucional à Nação? Os juristas de sempre, sempre subservientes, cooperaram com suas luzes: e arranjaram o termo antigo, romano: ‘editar’. E o Alto Comando editou.

“Na realidade, não foi editado. Foi simples e tiranicamente imposto a uma Nação perplexa, sem armas e sem líderes para a reação. Foi desprezivelmente imposto a um Congresso emasculado.”

O comentário partiu de um então quase desconhecido cronista e foi publicado na primeira página do jornal carioca “Correio da Manhã” no dia 11 de abril de 1964, nos primórdios do golpe militar. O atrevimento enfureceu a turma da farda e projetou nacionalmente o nome de Carlos Heitor Cony, até então tido como alienado, que só se interessava por literatura. E, portanto, deveria pertencer à “direita”. De repente, virou o principal soldado da resistência à quartelada. E “‘Leu o Cony hoje?’ passou a ser a senha de uma conspiração tácita de inconformados passivos” – como bem ressaltou Luís Fernando Veríssimo.

Cony passara uns dias de molho em casa, após uma operação de apendicite. No dia 1º de abril, resolveu sair para um passeio. A cidade do Rio de Janeiro encontrava-se sitiada, com a soldadesca tomando conta das ruas. O que viu e o que sentiu está na histórica crônica “Da Salvação da Pátria”, publicada no “Correio” de 02 de abril:

“Confiando estupidamente no patriotismo e nos sadios princípios que norteiam as nossas gloriosas Forças Armadas, lá vou eu, trôpego e atordoado, ver o povo e a história que ali, em minhas barbas, está sendo feita.

“E vejo. Vejo um heroico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de ‘gloriosa barricada’. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da Avenida Atlântica com a Rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro.

“Estou impossibilitado de ajudar os gloriosos herdeiros de Caxias, mas vendo o general em tarefa aparentemente tão insignificante, chego-me a ele e antes de oferecer meus préstimos patrióticos, pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente colocados um sobre o outro.

“– General, para que é isto?

“O intrépido soldado não se dignou olhar-me. Rosna, modestamente:

“– Isso é para impedir os tanques do I Exército!

“Apesar de oficial da Reserva – ou talvez por isso mesmo – sempre nutri profunda e inarredável ignorância em assuntos militares. Acreditava, até então, que dificilmente se deteria todo um Exército com dois paralelepípedos ali na esquina da rua onde moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida ignorância.

“Qual não é meu pasmo quando, dali a pouco, em companhia do bardo Carlos Drummond de Andrade, que descera à rua para saber o que se passava, ouço pelo rádio que os dois paralelepípedos do general foram eficazes: o I Exército, em sabendo que havia tão sólida resistência, desistiu do vexame: aderiu aos que se chamavam de rebeldes.”

Depois disso, Cony, que já passara sete anos no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido, seguiu a vocação de jornalista herdada do pai. E foi não apenas jornalista, mas também escritor, romancista, novelista, tradutor e cronista. Foi ainda o revisor e uma espécie de “ghost-writer” dos livros de memória de Juscelino Kubitscheck. No entanto, ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em maio de 2000, definiu-se, citando Eça de Queiroz, como “um anarquista entristecido, humilde e inofensivo”.

Carlos Heitor Cony, que faleceu na sexta-feira passada, aos 91 anos de idade, foi um dos mais importantes intelectuais do Brasil. Deixa uma obra respeitável. Mas será sempre lembrado pelo arrojo, destemor e bravura – se isso tudo não significasse a mesma coisa – com que se conduziu nos idos de abril de 1964.

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2 ideias sobre “Adeus a um bravo

  1. Raul G. Urban

    Meu caro Célio: primeiro- ler teus textos, é, sempre, mais que um momento único. Segundo: ler teu escrito acerca de Cony, mostra que nossa História é tão ou mais rica em fatos do que o imaginado!! Pasme: enquanto Cony, aos 91 anos nos deixava, me dei conta que sobr minha mesinha de cabeceira estava um livro manuseado em dias alternativos – já que tenho o hábito de, simultaneamente, ler três ou quatro livros sobre assuntos diversos. O livro em questão: a biografia de Charles Chaplin, escrito por Cony, tudo guardado num excelente volume então publicado pela Editora Civilização Brasileira, anos 1960 – quando a Editora era nossa referência maior quanto à ideologia. Por incrível que pareça, aqui, na minha biblioteca, existem ainda páginas e páginas de antigos jornais, inclusive os textos de Cony no velho e extinto Correio da Manhã, de Drummond, no JB, e por aí vai. Alguém lembra de Breno Caldas, nosso herói farroupilha do Correio do Povo? Pois é, também coexiste aqui na estante. Forte abraço, para que tenhamos, todos nós, a alma de Cony ao criarmos nossos textos.

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