7:34Ao querido Tio Paulo

por Sergio Brandão

Dezembro de 1996. A cena se passa na Via Dutra, rodovia que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Próximo de Jacareí, há pouco menos de 20 kms de São José dos Campos, na minha frente um gol, com placas de Campo Grande.

Eu e meu pai, meu parceiro naquela viagem, lemos juntos a placa e pensamos  a mesma coisa.

Ali, começamos uma conversa que terminou num tratado.

Em fevereiro iríamos à Campo Grande. Eu pela primeira vez, e ele depois de 50 anos.

É bom lembrar que de todos os irmãos vivos, apenas ele e o tio Paulo não haviam voltado à cidade natal. Depois de 50 anos, Orlando Brandão e Paulo H. Brandão fariam uma viagem inesquecível.

Formamos um trio que decidiu fazer o passeio vivendo cada momento. Eu levado pelas histórias que ouvi durante minha infância e meu pai e tio Paulo pelas histórias que viveram lá.

Fomos de carro. A ideia era passar o tempo necessário para ver, rever e conhecer o que fosse possível.

Saímos de Curitiba numa manhã de quinta-feira. Terminamos o dia no interior de São Paulo, em Presidente Prudente, a pouco mais de 100 kms da divisa com o estado do Mato Grosso do Sul.

Dormimos na casa dos amigos Dalva e Lyrio do Prado, avós do meu filho Luiz Fernando.

Amanhecemos em Prudente com muita ansiedade para pegar logo a estrada e seguir para Campo Grande.

Até o final do dia deveríamos estar em Campo Grande. Saímos cedo e,já no carro, parecíamos três crianças em véspera de  Natal.

Éramos movidos pelo prazer de estarmos juntos, vivendo a “epopeia “ de dois dias dentro de um carro, fazendo o caminho de volta, 50 anos depois, só que desta vez por rodovia e não de trem.

Sim, a saída da família Brandão, de Campo Grande, em 1947, foi feita pela minha avó, Joanita Brandão, sozinha , com os 10 filhos espalhados pelo vagão de uma composição que os levou até São Paulo. No dia seguinte, de ônibus, a viagem seguiu para Curitiba. Meu avô, Espiridião Francisco Brandão, já os esperava  em Curitiba com trabalho e casa já definidos na cidade que adotariam como definitiva.

Toda a nossa emoção se confirmou quando chegamos bem próximo da divisa dos estados de São Paulo, com Mato Grosso do Sul. Uns 5 kms antes, as placas de sinalização, em contagem regressiva, anunciavam a chagada do Estado de Mato Grosso.

Aquilo parecia um filme, uma volta no tempo. As três “crianças” silenciaram dentro do carro. Vivemos ali um momento de profunda introspecção, com direito a trilha sonora e tudo mais. No som do caro tocava a nona de Beethoven. Para quem conheceu meu pai sabe o que significava esta sinfonia para ele.

E a viagem só estava no começo. Era apenas uma divisa de estado, mas assim que cruzamos , tive que parar o carro. Os dois saíram e pisaram pela primeira vez, na vida adulta, em terra matogrossense.

Aquilo tinha muita emoção. Os olhos do meu pai se voltaram para o céu, muito provavelmente procurando o azul que ele tinha deixado por ali, há 50 anos.

Final de tarde, horário de verão, finalmente chegamos à Campo Grande depois de quase dois dias, finalmente chegamos ao nosso destino. Na medida que fomos entrando na cidade, as conversas foram rareando. A língua deixou que só os olhos trabalhassem.

Orlando Brandão provavelmente buscava algo que pudesse trazer alguma lembrança. Depois de algum tempo: ele larga a clássica: “Puxa!!! Campo Grande é outra cidade” !!!

O calor próximo dos 40 graus era a saudação que a cidade dava aos seus dois filhos e ao neto. Era assim que eu me sentia, neto de Campo Grande. O neto que veio ser apresentado ao avô.

Nos propusemos a três missões: localizar alguns parentes, cujo contato nunca foi feito, também localizar pelo menos um amigo de infância, rever alguns lugares e conhecer os principais pontos turísticos.

No comando desta “operação” estava um delegado de Polícia. Talvez a pessoa mais indicada para aquela missão. Afinal, localizar algumas pessoas tendo apenas o nome delas??? Um verdadeiro trabalho de investigação para um amigo meu, João “Biriba”, que já morava em Campo Grande há muitos anos.

Com a sorte e o faro de delegado, a reserva do hotel feita pelo João, nos colocou na “cara do gol”. O Hotel Gali, na avenida Afonso Pena, onde ficamos  vizinhos das primas Helena, Inês, filhos e netos. São os primeiros parentes já localizados no primeiro dia, logo após a nossa chegada.
E assim foi… localizamos o Tonico, primo de meu pai, o Plínio, um amigo de infância. Com todos eles tivemos horas e horas de longas conversas e visitas.

Não é necessário dizer que todas recheadas de muita emoção. Ver meu pai revendo e abraçando aquele povo foi algo que carrego comigo e guardo com muito carinho até agora.

Além de bom companheiro que foi, tio Paulo pegou o espírito da coisa, e quando a emoção falava mais alto do que devia, arrumava uma piada ou uma brincadeira para descontrair.

Numa caminhada matinal, apenas nós três andando pelo centro da cidade e na medida que a caminhada progredia, meu pai localizava lugares e endereços.

O velho Cine Trianon, o antigo endereço da Padaria da Família Brandão, onde hoje funciona uma loja de artigos fotográficos, a Padaria Central (a segunda da família), o Colégio Dom Bosco, que segundo ele ainda cheirava batina de padre, e finalmente a famosa casa da rua  Dom Aquino, o último endereço da família, antes da viagem definitiva para Curitiba.

Um grande silêncio … e apenas a máquina fotográfica e nossos olhos registraram aquele momento.

Recuperamos uma infância. Uma infância de um céu azul que só tinha em Campo Grande, de uma manga com um sabor que só tinha lá.

O passeio também deixou meu pai diante de um dos maiores crimes que cometeu na infância, quando numa inofensiva brincadeira de bandido e mocinho amarrou um gato na linha do trem (claro que o gato era o bandido). A cada quarteirão, uma história ia sendo contada.

Passava na minha cabeça o filme das histórias que povoaram a minha infância.

Um filme criado, produzido e gravado na infância dele.

Os mortos não escaparam. Helena, prima do pai, nos levou ao cemitério.

Lá tinha uma turma que também habitou as histórias que ouvi quando menino.

Ficamos quase uma semana em Campo Grande, até que numa segunda-feira pela manhã, como dizia o seu Orlando, “encilhamos o cavalo” e começamos o caminho de volta com duas paradas previstas. Presidente Prudente e Londrina. Em Londrina ficaríamos dois dias com o tio Zeca, também irmão do pai.

Mal sabiam os três aventureiros que uma nova epopeia estava começando.

Adiante 100 kms de Campo Grande, o carro “apaga” . Nem motor, elétrica, nada funcionava … mas com o tio Paulo do lado, fiquei tranquilo. Ele era um conhecedor de mecânica, só que não levei em conta que já vivíamos uma revolução no mundo da mecânica, na montagem de motores.

Aquele era um gol seminovo, com injeção eletrônica e não um wolkswagem carburado. O calor que nos recepcionou na chegada da cidade estava lá impiedoso, naquela rodovia sem nenhuma alma viva, nem uma árvore com uma sombrinha, nem comércio, posto de gasolina … nada.

Dos dois lados, para frente e atrás, só se via estrada e um mato ralo. De vez em quando, lá longe a gente via uns animais grandes cruzando a pista.

Mais tarde fui saber que eram Emas que habitam a região.

Também só mais tarde fui saber porque a solidariedade não era uma prática comum naquele trecho da rodovia.

É que paramos exatamente numa região perigosa, de muitos assaltos, próxima a um presídio e que para nossa “sorte” teve uma fuga em massa dois dias antes e que até aquele momento ninguém havia sido recapturado. Enfim, no lugar errado, na hora errada, com o carro errado!!!

Mas naquele momento, sem saber de nada disso, aquela cena clássica do pedido de socorro na estrada era o que nos restava fazer. Triangulo para sinalização, bracinho esticado, tudo dentro do padrão, mas todos os caminhões e carros que por nós  passaram, nem de longe davam sinal que estavam comovidos com nossa situação.

Quase um hora depois, um carro particular para. No volante um senhor de uns 60 anos. Ele parou lá na frente, a uns 50 ,70 metros de onde estávamos.

Fui correndo até ele que me recebe com uma arma apontada.
– Não chega perto, não… fala daí! Só parei por causa do dois senhores de cabeça branca”, disse ele.

Contei os meus problemas e ele me disse que mais na frente, a uns 50 kms, tinha um borracheiro. Pensei – o que um borracheiro podia fazer por mim? O meu problema era mecânico!

Bem, era uma ajuda e eu não podia rejeitar… acabei aceitando. Perguntei se ele me levava até lá?
·    –     Você não, um dos dois velhinhos, sim! – arrematou o cara bem convicto
·     –    Ahh!!!



Voltei correndo, debaixo daquele sol inclemente e coloquei o problema aos meus parceiros. Juntos decidimos que meu pai embarcaria. Foi o que nos pareceu mais razoável. Era o mais frágil, mais velho e ainda saia debaixo daquele sol.

A partir dali foram momentos de muita oração. Meu pai com um cara que eu não conheço, e ainda armado.

Uma hora depois chega meu pai acompanhado de um negão reluzente, vestido com um macacão de mecânico, cheio de graxa e óleo. Por um instante senti um grande alívio. Puxa, meu pai deu sorte e achou um mecânico e não o borracheiro, pensei. Mas não, ele era mesmo o borracheiro. Eles vieram num opalão bem detonado. O carro andava de lado. Parecia cachorro quando reencontra o dono depois de muito tempo.

O cara olhou… deu aquela clássica coçada na cabeça e me disse que no máximo podia rebocar o Gol. Não me restava outra alternativa a não ser aceitar a oferta. Ele ainda completou dizendo que me deixaria num lugar que era parada de caminhão. Amarra corrente daqui, amarra dali, restou mais ou menos um metro e meio ou dois de distância entre a traseira do Opalão e a frente do gol.

No Opalão o negão, tio Paulo e meu pai. Eu na boleia de um carro sem motor, sem freio, com o volante duro, podendo fazer muito pouco, ou quase nada.

Quando finalmente chegamos na tal parada de caminhão, precisei de uns 5 minutos para relaxar e descer do carro. Francamente não sei como chegamos ali, sem nenhuma história mais grave para contar.

Finalmente pude me inteirar de tudo. Foi onde fiquei sabendo que não estava numa região muito amistosa. Aquilo na verdade não era exatamente um local de parada de caminhoneiro. Tinha de tudo. Cachorro sem perna, criança chorando, mulheres de seios à mostra, os colchões usados durante a noite tomavam sol para se preparem para uma nova noitada. Era o lugar onde os caminhoneiros se reabasteciam, faziam a festa com mulher e bebida. Para cada canto que se olhava a cena passava longe de se parecer com um convento de freiras ou de um mosteiro de monges.

Depois de algum tempo, ainda acompanhado do negão do opala, e ainda com o problema sem solução, embora alguns gentis caminhoneiros tentaram nos ajudar, mas em vão. O carro não funcionava de jeito nenhum.

Olhei para o meu pai… depois para o tio Paulo que me disse em tom bem solene:

“ Sérgio, nós temos que sair daqui”. O negão ouviu, se apiedou de nós e me aconselhou a usar um telefone que ficava a uns 70 kms dali. Acertei mais um dinheiro com o negão para me levar e trazer de volta. Achei o guincho para nos tirar dali e acertamos o resgate.

Voltei para onde estavam meu pai e tio Paulo. Esperamos umas duas horas e meia, quase três, até que finalmente o guincho chega.

Sem contar uma caixa de abelhas na carroceria do guincho, com aquela estrada esburacada, aquilo sacudia o suficiente para deixar aquelas abelhas bem nervosas, e eu com a sensação que de uma hora para outra aquilo cairia no meu colo. Com todo o calor, mas para não ter problemas com as abelhas, preferi fechar os vidros do carro.

Chegamos em Presidente Epitácio, já no Estado de São Paulo, onde fomos acolhidos pelo Dr. Lyrio que nos carregou até Presidente Prudente e mais uma vez nos acomodou em sua casa.

Dois dias depois o carro fica pronto e lá fomos nós para Londrina, terminar a nossa façanha, agora com o Tio Zeca como cúmplice. Sim, porque entre Prudente e Londrina percebi um vazamento enorme de óleo no cárter. Chegamos em Londrina direto numa autorizada. Mais uma vez dois dias de espera para novo conserto.

A nossa volta para casa que estava prevista em três dias, parando espontaneamente, acabou com o dobro de tempo.

Nem de longe eu diria que com todos os problemas da volta, a viagem foi um fracasso. E olha que eu ainda não contei da multa que levei por excesso de velocidade, tendo feito grande parte do trecho Curitiba- Campo Grande, rebocado por  um caminhão.

 Acho que uma atitude do tio Paulo, resume melhor todo o sentimento e sofrimento que vivemos. Assim que chegamos em Curitiba, na frente do Parque Barigui, ele me pediu para parar o carro. Obedeci… Ele desceu, ajoelhou-se e beijou o chão agradecendo a Deus.

Hoje conto sozinho esta história. Os dois já se foram. Hoje, faz um ano que tio Paulo se foi. Dedico a ele esta maravilhosa e inesquecível história.

Ninguém se chama Brandão impunemente.

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Uma ideia sobre “Ao querido Tio Paulo

  1. Bomfim

    ZB, este texto não está muito “curto” para ser publicado em um blog como o seu? Como diria você mesmo, “é expressionante!”.

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