12:41As revoluções inúteis

Por Ivan Schmidt 

Este será o terceiro e último artigo sobre a Revolução de 30 (pelo menos nessa fase), e o foco pretendido é chegar a algumas conclusões lógicas sobre a polêmica questão ainda hoje em debate: a revolução cumpriu efetivamente seus propósitos e ideais, ou foi um mero golpe de mão dos autores?

A indagação é válida para qualquer tipo de revolução, em qualquer época e em qualquer país do mundo.

A Revolução de 30 supostamente teve origem na Aliança Liberal formada pelos partidos republicanos do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba, que apoiaram a chapa Getúlio Vargas-João Pessoa na disputa pela presidência da República na eleição realizada a 1º de março do mesmo ano, em oposição à candidatura de Júlio Prestes apoiada pelo então presidente Washington Luís.

O paulista Júlio Prestes foi eleito, mas a virulência do discurso de algumas alas acabou conduzindo o ardor cívico na direção do movimento eclodido no dia 3 de outubro, a partir do Rio Grande e para cujo êxito foi absolutamente decisivo o pronunciamento militar.

É, contudo, facilmente se identifica a porção civil do movimento revolucionário representada pelos novos senhores do poder, que sonhavam restaurar a nação introduzindo transformações profundas na sociedade, em oposição ao regime deposto da Velha República.

O movimento de 3 de outubro de 1930, de cunho e alcance nacionais segundo seus idealizadores, se autodefiniu como “revolução”, tendo em vista o caráter transformador e não restrito às operações militares que resultaram na tomada do poder.

Um dos mais destacados intelectuais orgânicos a serviço da revolução e homem de gestos resolutos, o gaúcho Oswaldo Aranha, dizia que o conjunto de ideias e ações, além de necessário e fundamental, concorria para evitar a volta ao passado considerada pelos revolucionários um retrocesso inadmissível.

Aranha chegava a proclamar que a revolução não tinha origem na Aliança Liberal porque transcendia a homens e partidos, embora ajuntasse uma predição temerária: “A revolução sobreviverá aos erros que em seu nome forem cometidos”.

A tarefa da reconstrução do Estado esbulhado por interesses personalistas, o combate à fraude e à corrupção e, enfim, a defesa dos verdadeiros interesses nacionais, constituía a meta principal da revolução e seus atores, que em última análise pregavam o surgimento de uma sociedade organizada e estruturada num Estado forte e centralizado.

Entretanto, poucos meses depois da posse de Getúlio Vargas na chefia do Governo Provisório, um perspicaz Oswaldo Aranha já admitia em carta ao presidente do Partido Republicano do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, que “a ditadura, exercida sem autoridade, a despeito de discricionária, vai desprestigiando e enfraquecendo o novo governo na opinião pública nacional”.

Aos poucos, entrava em operação por estrita necessidade uma espécie de discurso de legitimação do conflito recente, cujos alicerces começavam a ser contestados vivamente pela sociedade. O esforço mobilizador que se seguiu buscava arregimentar os quadros mais indicados do Governo Provisório, cujas ideias passaram a ganhar ênfase em nome da revolução, com a finalidade precípua de dar forma institucional a uma pedagogia revolucionária. Uma ofensiva de quimeras.

Tenho em mãos o livro de Timothy Snyder — Sobre a tirania – lançado por esses dias pela midiática Companhia das Letras (SP), escrito depois da eleição de Donald Trump, a partir de um texto postado no Facebook para comentar algumas características da política contemporânea herdadas do século passado.

É óbvio que o escritor norte-americano não se refere às revoluções brasileiras, abrindo o livro com uma declaração que contraria a famosa frase de Marx: “A história não se repete, mas ensina”. E é exatamente aí que um estudioso da história recente do país pode topar com algumas nuanças que o ajudam a entender como as coisas, de fato, ocorreram. Snyder assegura na primeira das vinte lições do século 20 para o presente que “a maior parte do poder do autoritarismo é concedida voluntariamente”, aduzindo que “a obediência por antecipação é uma tragédia política”. É o comportamento submisso da tal “maioria silenciosa”, outra invenção genial da política norte-americana diante do comportamento bovino da massa burguesa.

Os principais líderes da revolução que empalmou o poder em 1930 sabiam algumas coisas, mas não tudo e, talvez somente tivessem uma pálida avaliação do tamanho do mal que a revolução poderia causar e efetivamente causou. Decerto esses homens não ignoravam o fato de que, aos poucos, a revolução atrairia toda sorte de bajuladores e aproveitadores, as “vivandeiras” como mais tarde as definiu Ernesto Geisel, um dos ditadores do golpe de 1964.

Em rápida pesquisa no tomo II de A Revolução de 30, publicado pela Universidade de Brasília (1982), com base nos arquivos do Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), o leitor se depara com o manifesto de Vargas publicado no dia 14 de maio de 1932, no qual presta contas à população sobre os rumos do movimento de outubro.

Sobre a atuação da Aliança Liberal, Getúlio diria que “esta força gerou a Revolução de Outubro, cujos efeitos de ordem política e social não poderiam restringir-se aos postulados da Aliança Liberal. Como processo violento, aplicado à transformação de um regime em bancarrota, ela somente se condicionaria às necessidades impostas pelo momento excepcional em que teria de atuar para reconstruir, de alto a baixo, o arcabouço institucional do país”.

Assim, acrescentaria o caudilho que “o Governo Provisório não fez política, no sentido de submeter-se aos postulados e às solicitações dos interesses de partidos, de classes ou facções. Todo seu esforço consistiu em firmar a ordem material, para tornar possível a realização dos melhoramentos e reformas exigidos pela nova situação do país”.

Os argumentos usados por Getúlio há 85 anos guardam espantosa similaridade com as declarações de líderes políticos no exercício do governo em épocas mais recentes e, em alguns casos, recentíssimas: “Em face da herança calamitosa, deixada pela primeira República, consistiria excesso de otimismo supor que, no curto prazo, fosse possível restituir à Nação, sua vida normal, sem risco de reincidir, pelo menos parcialmente, nos antigos erros que a levaram à ruína”.

Notemos a lógica maniqueísta do chefe do governo ao palmilhar o terreno delicado da reestruturação da ordem democrática: “Compreende-se que o restabelecimento da normalidade constitucional, antes da revolução produzir seus efeitos imediatos e benéficos, seria apenas a restauração do passado, com as causas determinantes do movimento reivindicador. Se isso sucedesse, legitimar-se-ia o argumento negativista, frequentemente invocado, de que lhe fora objetivo substituir homens, e não renovar instituições, quadros e métodos de governo”.

Orçamento desequilibrado, despesas públicas efetuadas à margem das formalidades legais, desordem administrativa instaurada como norma, dívida impagável, descrédito no exterior e outras mazelas, abundavam no discurso oficialista do chefe do Governo Provisório, que atingia o ápice da dominação política ao declarar não ser, em absoluto, “contrário à volta do país ao regime constitucional”, embora o fizesse com a candura de um varão de Plutarco reconhecendo que a ele não cabia, porém, impor critérios pessoais: “Incumbe-lhe, no entanto, como missão primordial, auscultar os sentimentos do povo brasileiro, ouvir o parecer dos líderes revolucionários que mais fielmente os interpretam e agir de acordo com a maioria da opinião pública e, muito principalmente, no sentido de satisfazer as necessidades vitais do país”.

E chegava ao ponto mais elevado do utópico caminho da revolução: “Desejo apenas traduzir em atos o programa administrativo que a revolução exige, para, em seguida, entregar o país, reconstituído e renovado, ao exercício normal de suas atividades e confiá-lo a seus legítimos mandatários, escolhidos pelas urnas”.

Como se sabe o Estado Novo durou até novembro de 1945 e com a volta da democracia, o general Eurico Gaspar Dutra, um dos comandantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial e ministro da referida pasta durante a ditadura Vargas, foi eleito pelo voto direto para a presidência da República, em dezembro do mesmo ano.

O governo Dutra abriria caminho para o retorno triunfal de Getúlio, que passaria quatro anos recolhido à Fazenda Itu, em São Borja, dali saindo para a campanha que o levaria à presidência em 1950 pela legenda do PTB, partido que ele próprio havia criado. O brigadeiro Eduardo Gomes candidatou-se pela UDN e Cristiano Machado pelo PSD, sendo esse candidato abjetamente traído pelos correligionários em favor de Getúlio, no episódio que entrou para a história como “cristianização”.

Na madrugada de 24 de agosto de 1954, segundo os historiadores, na iminência de ser derrubado da presidência pelos ministros militares, Getúlio recolheu-se aos aposentos no Palácio do Catete e desferiu um tiro sobre o coração. Substituído pelo vice-presidente João Café Filho que renunciou em seguida, ocorreu uma tentativa de golpe pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, também apeado. O mandado foi concluído pelo senador catarinense Nereu Ramos, então presidente do Senado.

Dois novos presidentes foram eleitos: Juscelino Kubitschek (1955) e Jânio Quadros (1960), mas este renunciou sete meses depois da posse. O vice Jango Goulart assumiu o posto, mas foi literalmente massacrado pelo estamento militar em função da nebulosa desconfiança de simpatia pelo comunismo, ele que era estancieiro e latifundiário, um dos homens mais ricos do Brasil.

Estimulados pela mesma oligarquia sobrevivente à Coluna Prestes e que bateu continência aos militares ao longo de 15 anos, os quartéis voltaram a falar em 1º de abril de 1964 derrubando Jango que fugiu para o Uruguai, em novo golpe militar que se estendeu por mais 20 anos. Assim, o Brasil passaria mais de um terço do século 20 sob o domínio de regimes discricionários. É isto a revolução?

 

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2 ideias sobre “As revoluções inúteis

  1. Zé Ninguém

    O Poder é ótimo mas quando o temos nem sempre sabemos como usá-lo corretamente. Infelizmente a Revolução de 30 refletiu o estado de ânimo da época, ditaduras na Itália e na Alemanha Na Rússia Stalin à toda liquidando os seus desafetos. E o Tio Sam fechado em si mesmo sem se importar com as desgraças pela quais o mundo passava então.

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