6:49Enquanto a inteligência ainda existe

por Célio Heitor Guimarães

Graças aos modernos veículos de comunicação, sobretudo os tais smartphones – dos quais continuo mantendo profilática distância –, devidamente equipados com o tal aplicativo whatsapp, o gentio, que já não sabia mais fazer contas, passou a desaprender a escrita e até a fala. Quer dizer, no dia em que faltar luz ou forem descarregadas as baterias, restarão sobre a terra hordas de zumbis, vagando sem saber o que fazer.

O recente falecimento da edição impressa do jornal curitibano “Gazeta do Povo”, às vésperas de se tornar centenário, é um bom momento para retomarmos o tema.

Não lamento o fim da “Gazeta”. Lamento o fim da imprensa, do jornal escrito. E, embora esteja aqui me expressando on-line, por graça e gentileza do nosso Zé Beto – ele próprio formado e criado na imprensa de papel, ao som da rotativa, sentindo o cheiro da tinta de impressão –, ouso afirmar, parafraseando Monteiro Lobato, que uma cidade sem jornal é uma cidade sem alma.

Em Curitiba, nos últimos tempos, perdemos “A Tarde”, “O Dia”, “Paraná Esportivo”, “Diário da Tarde”, “Diário do Paraná”, “Correio do Paraná”, “Correio de Notícias”, “Diário Popular” e “O Estado do Paraná”… Hoje, foi a “Gazeta”; amanhã, será a “Tribuna do Paraná”. E estaremos todos nós, leitores, cada vez mais órfãos, porque um jornal não é apenas um veículo de comunicação; é o repórter e o escrivão da vida de um povo, da civilização. No Brasil, a imprensa escrita confunde-se com a história do país, tem tudo a ver com a formação de nossa gente, de nossa cultura, de nosso desenvolvimento. Quando morre, ainda que aos poucos, deve ser motivo de enorme tristeza. Mas as novas gerações, os dependentes dos smartphones e os cultores do whatsapp não estão nem aí. O que lhes importa é estar conectado, de olho na telinha.

O homo sapiens demorou milênios para dominar a escrita, isto é, a utilização de sinais gráficos para exprimir as suas ideias. No limiar do século XXI, está fazendo o possível para livrar-se dela. Começou com a publicidade e avançou com a televisão, onde a síntese é obrigatória, ainda que com prejuízo do entendimento. Agora, vive o avanço da comunicação on-line. O que o futuro nos reserva, só Deus sabe. Talvez nem Ele.

O publicitário Ciro Pellicano confessou que, por ter exercitado, durante anos a fio, o “fascinante ofício da síntese”, de repente já não conseguia escrever uma carta com mais de cinco linhas nem manter uma conversação que excedesse trinta segundos. Voltou correndo para o papel e ao exercício das letrinhas, porque sentiu na própria pele que escrita e fala, quando não exercidas, acabam sendo inevitavelmente esquecidas.

Ciro é autor de um delicioso livrinho, que denominou “A Última Coisa que Pretendo Fazer na Vida é Morrer” (Ed. Códex, 2003). Nele, ele revive, por escrito, uma coleção de citação de “frases essencialmente supérfluas (ou superfluamente essenciais)”. Eis aqui algumas delas, reproduzidas como homenagem ao autor e prova de que, mesmo com o fim dos jornais impressos, a inteligência pode continuar existindo:

• “O homo sapiens surgiu na África. Mas, assim que ficou um pouquinho mais sapiens, emigrou para a Europa.

• Consumo conspícuo é você comprar um dicionário só para saber o que a palavra significa.

• Ponto facultativo: Sinal ortográfico de uso não obrigatório.

• Nasci com um dom, mas era só um sino da igreja marcando uma da manhã.

• Era uma família de estrutura tão baixa que, em vez de árvore genealógica, tinha um arbusto.

• Os homens são de Marte, as mulheres são de Vênus. E os milhões de idiotas que compraram o livro são aqui da Terra mesmo.

• A televisão costuma exigir só 25% do coeficiente de inteligência dos telespectadores, cifra que na maioria dos casos representa 100% do que eles possuem.

• Superior hierárquico: Um ser inferior.

• Casamento: Instituto jurídico pelo qual duas pessoas decidem dividir o leito até o momento de dividir os demais bens.

• Diga não aos poderosos, mas tome o cuidado de não ser ouvido.

• O poder só sobe à cabeça quando encontra o local vazio.

• Como já destruiu a sua, o alcoólatra bebe sempre à saúde dos outros.

• Avó: Uma mãe que o fogo baixo do tempo tornou mais saborosa.

• Toda vez que ouço falar de alguém que tenha morrido por falência múltipla dos órgãos, fico sem saber se a expressão se refere ao doente ou ao sistema de saúde.

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