17:36O Grito

de Fernando Muniz 

        Entrava no bar feito príncipe, sem se importar com o tamanho da audiência ou a altura dos fregueses. Frágil de físico, ele escolhia o melhor assento e o tomava para si, mesmo se estivesse ocupado. Vez ou outra sentavam o sarrafo nele, que caía gritando. Os habitués aguardam a tempestade passar e, dali a uns goles, o homem puxava conversa, manso.

E que conversas. Dado a saber de tudo, desde alta literatura até as misérias das manchetes, misturava os assuntos com graça, em português claro e enxuto, de um cérebro cultivado pelas “altas humanidades”, mas sem ranços de bacharel ou bisonhices dos deslumbrados que falam castiço. Até suas especulações mais esdrúxulas soavam plausíveis, embaladas por uma entonação alarmista e trejeitos de quem acaba de descobrir uma gigantesca conspiração, arrancando gargalhadas da audiência.

– Essa conversa de o Ministério Público escovar o país ainda mata o nosso Carnaval. Como ficaremos sem a imoralidade ou os maus costumes?! Sou índio, quero apito! Minissaias esperem por mim! Parem o bonde que eu quero descer!

De tanto aprontar, virou celebridade no bairro. Mas ninguém sabe ao certo de onde veio ou se morava na região. Alinhado, apesar de se emporcalhar ao comer, fazia o tipo de quem trabalha em jornal ou escritório. Pobre não parecia ser; nunca desprevenido ao distribuir tragos para a plateia. Mas a instabilidade e o destempero eram a tônica. Bastava alguém aparecer com paletó, gravata e pasta executiva e o homem esquecia o remanso da bebedeira e voltava a soltar desaforos. De todo tipo e calão, em alto volume.

Fato é que nutria horror a quem participa de engrenagens, seja banco, igreja ou Estado. Tinha ódio feroz contra quem as replica ou se locupleta com a vulgaridade e baixeza, social e política, que engolfa a todos. As agressões aumentavam até o ponto em que o sujeito ou lhe dava um murro ou se retirava para outro bar.

Alguns, crendo conhecê-lo, sentiam que aquela loucura ia um pouco além da mera sandice ou falta de educação. Viam nele a coragem de fazer o que todos gostariam. De virar a mesa e tacar fogo em tudo, protegido apenas por uma barricada verbal. De responder aos absurdos de violência e vilania do mundo na mesma moeda e sem pedir reembolso.

Alguns até faziam coro com os destemperos, mas a certa altura era deixado a sós. Sentiam ter algo a perder. Ele, pelo jeito, sentia não ter mais nada.

Assim como aparecia, não deu mais as caras. Alguém apontou a foto de um morto por atropelamento, em um jornal popular qualquer. Estatelado na via pública. Rosto comum, daqueles achados por todo o lado.

E o sumiço foi resolvido assim. Pelo menos para os que frequentam o bar pelo espetáculo.

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