4:39A Curitiba que conheci

por José Maria Correia                 

                                                                            “ A memória é o paraíso do homem”.

              Com o perdão do mestre Rubem Braga que abominava os textos dos  memorialistas, como escrever sobre Curitiba sem a evocação da memória? 

            Afinal, são mais de sessenta anos de andanças e perdições, caminhos e descaminhos. 

            As esquinas que me viram jogando burico e correndo inútilmente atrás dos balões nas festas juninas são as mesmas que escondem solidárias até hoje os ecos de minhas paixões adolescentes. 

            Esta a minha velha Curitiba, confidente única, a parceira do silêncio que comigo dividiu os roteiros juvenis e secretos de sentimentos ardentes e de tantas lágrimas vertidas por inocência e ingenuidade. 

            Com que saudades, Curitiba, vejo ainda nas fotografias do imaginário os lambaris translúcidos povoando todos os rios da minha infância, águas cristalinas terminando em pequenas quedas e cascatas, domingos de futebol, campos verdes e multidões em tardes douradas de encantamento. 

            Como esquecer as doces manhãs de guarda-pós brancos, brilhando alvos como marfim nos pátios do 19 de Dezembro, do Julia Wanderley e do Belmiro Cesar. 

            Quanta devoção pelas primeiras professoras, musas inatingíveis a criar sonhos febris e fantasias irrealizadas até hoje.            

             E que tempos os do Colégio Estadual, do esporte, do teatro, da música e da literatura, tudo tão diferente de hoje, da linguagem virtual minimalista, das decorebas em cursinhos massificados e vestibulares do marketing e do comércio. 

            Foi no Estadual, na antiga biblioteca, com a cumplicidade dos mestres e eruditos que devorei “Os Subterrâneos da Liberdade” e toda a coleção de Jorge Amado, autor proscrito e no índex da ditadura militar que nos sufocava, mas não nos submetia. 

            E os roteiros underground: o voyeurismo de espiar as lindas modelos posando nuas nos porões da Biblioteca Pública, os olhos grudados nos vitros semi-abertos embaixo da rampa e as mãos nervosas nos bolsos das calças ainda curtas. 

            Levar as namoradas de surpresa na morgue da Universidade – e tirar proveito da imobilidade causada pelo terror da visão da morte mumificada em formol para minutos de roubado erotismo. 

           Invadir à noite os porões e os labirinto de rituais de iniciação das lojas maçônicas, tentar decifrar as inscrições e os símbolos proibidos – e finalmente a prova suprema de coragem, pular o muro do Cemitério Municipal à meia noite e atravessar sozinho de ponta a ponta, passo lento e sem pressa, entre assustadoras cruzes de bronze e sombrios  anjos de pálido  mármore iluminados por esquecidas velas e círios. 

            Essas proezas conferiam status. Só não me perguntem quem criava tais desafios. 

            Depois, deixado o Estadual, e já na Faculdade de Direito na Federal, vieram outros enfrentamentos, riscos maiores e nem sempre percebidos.           

           Em 1968 a tomada da Reitoria na luta pelo ensino público e gratuito, os muitos confrontos com a repressão, as passeatas que tomavam toda a Rua Quinze, paralelepípedos nas mãos, os comícios relâmpagos, as panfletagens e as pichações. 

            Quem caía protestando contra o arbítrio ficava recolhido, uma longa temporada na grade. Quem não dançava e não era preso, resistia e na rua permanecia por conta e risco.

            Essa foi a geração do mimeógrafo, dos manifestos de coragem e da utopia, da tinta spray e dos cabelos longos contra os tanques e blindados, as bombas e as torturas nos calabouços. 

           Contra os fuzis os cassetetes e os mosquetões com apenas os estilingues e as pedras como fazem hoje as crianças e os adolescentes na Palestina. 

            Olhando para esse tempo que não morre nunca, remanesço ainda um peregrino de todos os meus lugares santos, romeiro do antigo Bar do Pasquale, cantado em prosa e verso pelo Dante Mendonça, a praia curitibana de sábado no Passeio Público. 

            Socorrido sempre fui nas emergências da fome pelo bar Triângulo e comensal de jantares intermináveis no Bar Palácio da Barão do Rio Branco, onde mulheres desacompanhadas inexplicavelmente não eram admitidas. 

            E é na memória emotiva  já fragilizada que ainda procuro todos esses lugares. 

            Procuro eterna e inútilmente a minha taça de morango com nata, esquecida para sempre em alguma mesa de almoço de domingo com meu pai no restaurante  Bar Paraná da rua XV. 

            Procuro na dor da perda, meu pai, com um grito que não cala em meu coração e ecoa esses anos todos, cada vez mais sofrido, mas também mais próximo de silenciar.

            Procuro minha juventude e a mim mesmo. 

            Procuro meu corpo jovem na imagem caleidoscópica multifacetada em cor neon- luxúria, criada pela Maria Japonesa na magia do quarto dos espelhos da boate 4 Bicos na Vila Oficinas. 

             No antigo Joaquim Américo, à sombra dos pinheiros, e nas arquibancadas de madeira, ainda escuto os gritos a cada gol do furacão rubro-negro, o verdadeiro do Jackson e do Cireno, assim como escuto em meus sonhos de olhos abertos as batidas de pés no chão do Cine Curitiba a cada vez que arrebentava a já gasta fita do seriado do Fu-Man-Chu ou do Sombra (pam/pam/pam/pam/pam/pam.) 

            Cada vez que vou ao aeroporto ouço ao longe os metais da orquestra do maestro Genésio do dancing Águas Belas, perto do primeiro motel, o 007 do pioneiro Cobrinha, e as sirenes assustadoras das viaturas em mais uma das intermináveis batidas policiais da Ronda do Delegado Paulo Lagos. Intuitivamente olho em volta em busca da proteção do armário em que, menor de idade, me escondia.

             E no porão do velho Clube Curitibano ainda dá para escutar o eco do cantor Natinho em dueto com a paraguaia Perla da boate dancing Presidente, do grandão Coelho, Galopeiraaaaaaaa… 

            No fim da madrugada, lá no alto da Rua Visconde, encontrava o craque Zé Roberto tomando a penúltima e descrevendo para as meninas os gols que faria no dia seguinte, fugido da concentração e do velho e grande técnico Elba de Pádua Lima, o Tim, escondido na boate Caverna da Bruxa. 

            Quando chegava o carnaval no baile do Operário, suprema glória da viadagem curitibana , o decano Osvaldinho abandonava o banco onde reinava na Praça Osório seduzindo os soldados vindo do interior, para triunfar no Gala Gay fantasiado de Candelabro Italiano, como no filme sucesso da época estrelado pela Suzane Pleshette e pelo Troy Donahue. 

            Em outra rua, a Comendador Araújo, quase ao lado da Igreja Presbiteriana, estouravam nas panelas as pipocas do maitre Orlando, na boate Gogó da Ema – metade milho, metade sal para matar de sede os clientes, circunspectos doutores, e faturar mais alto nos drinques de claricol, campari e Sant Remy exigidos pelas meninas de programa, docemente apelidadas de bailarinas, embora só bailassem na cama das espeluncas onde eram levadas pelos fregueses. 

           Quando a noite estava para acabar, iam todas elas matar a fome com uma canja da madrugada e ouvir as histórias cheias de ironias, sabedoria, metáforas e advertências aos boêmios, platéia do velhote Perly ,na mesa redonda que dividia com o escritor Jamil Snege e o Almir Feijó no café do Hotel Colonial, o último refúgio da intelectualidade notívaga de Curitiba e que já  fechou as portas há décadas. 

            O fato é que por onde andei tratei de marcar como sacras todas essas referências antigas. 

             As portas cerradas dos botequins e restaurantes que nunca mais serão abertas e que escondem em seu interior vidros coloridos e opacos com os mais preciosos tesouros de minha infância, balas de ovos, balas de banana de Antonina, as figuras do Zequinha, copos de capilé, biscoitos Lucinda e Maria Mole no balcão do Seu Estacho. 

             Só esta Curitiba única foi minha companheira de desabafos etílicos em madrugadas brancas de névoa e neblina entre rubros vômitos de Cuba-Libre, Gin e Hi-Fi. 

            Nas esquinas ficaram também as serenatas e os buquês de rosas recusadas, o bumbo silenciado do Fernandinho Louco, o som do Rock Harold The Clock, Elvis, Beatles e Rolling Stones, que se foram como o ronco dos escapes abertos das Kombis, dos DKWS e dos Gordinis  fugindo das possantes  motos  Harley Davidson dos guardas Guerra e Pignatari,  incansáveis atrás da gurizada. 

            E uma a uma as lembranças foram substituindo as ilusões dos amores que seriam eternos, das conquistas definitivas e dos amigos que durariam para sempre, mas já se foram sem despedida. 

            Os rios e riachos foram cobertos de concreto urbano como lápides, perderam a vida e o encanto. Os bosques foram enterrados em cimento, tumbas de vidro e aço – e as estrelas encobertas pelas luzes artificiais desistiram de pedir socorro. 

            E os cinemas, ah os cinemas esses são os insubstituíveis: o velho Luz com os cartazes de Sansão e Dalila pintados à mão pelo artista, o investigador Maciste; o Avenida com os épicos, entre eles Os Dez Mandamentos, que tanto me impressionou; as matinadas do Ópera com os desenhos  depois da missa, e as matinês do Palácio, com as comédias água com açúcar de Doris Day e Rock Hudson, estranhamente adorados por Paulo Francis, embora de péssima qualidade e sem nenhum conteúdo. 

          Nas bombonieres se buscava um drops Dulcora, a delícia que o paladar adora, balas de chocolate e azedinhas , e life savers. Tudo era diferente, mágico e apreciado.           

             O destaque era o gigante cine Vitória, que foi o nosso Chinese Theater, tão louvado pelo cronista misógino da Tribuna, o E.G.C., sempre impecável em sua inseparável capa de gabardine italiano e que ciceroneou Janet Leigh e Karl Malden depois de um festival organizado por ele com  direito a um jantar na Confeitaria Iguaçu. Nunca mais artistas consagrados de Hollywood visitaram Curitiba. 

            Dos velhos e grandes cinemas transformados em bingos, igrejas mercenárias e estacionamentos decrépitos, restaram só fotos e cartazes desbotados como se fossem figurinhas coladas para sempre nas páginas do álbum de minha alma melancólica. 

            E de tanta perda, salvo apenas as lembranças, já que procuro ainda e desesperadamente, os meus mortos todos. 

            Procuro a todos, esperando inutilmente que um dia renasçam ou desmorram para me fazer companhia – ou deverei partir eu, já que de cada um deles e desses lugares queridos sou muito precisado para reencontrar a minha cidade. 

            Mas procuro também os vivos e a coragem de gritar bem alto o quanto eu os amo e que a vida seria impossível sem cada um dos que restaram e dos que vieram depois. 

            Esta procura termina sempre em silente exaustão, naquele que um dia fui. 

            E assim, já que o tempo não volta mesmo, e as pessoas não se desencantam, fico com a alternativa única de que falava o poeta Rylke: viver apenas o que resta. 

            Amparado  com a esperança demencial a que se referia sempre Ernesto Sábato. 

            Viver, tentando compreender tudo como um recomeço e não um fim de linha. 

            E me convidar, e ao companheiro de leitura, para a interminável gravidez do mundo, onde todas as manhãs, apesar de tanta desesperança, há um radiante parto de luz e um  esperado reencontro com amores, ilusões e seres, que apesar de perdidos para sempre, ainda habitam em cada um de nós. 

            Pesam em nossos destino , zumbem em nosso sangue, e de quando em quando emergem, repetindo-se em nosso gestos, textos e palavras. Parece que os imitamos para nos aliviar e consolar.        

            E prosseguir, nada mais, somente prosseguir.

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2 ideias sobre “A Curitiba que conheci

  1. rubens ghilardi

    José Maria
    Confirmando aquele ditado, recordar é viver, passei pela imagem da minha juventude pelo que você escreveu. Faltou um pouco da minha infância, devo ser mais velho que você nasci em 1940. mais o meu dia de hoje vai ser de recordações pelo que vive nesta nossa querida Curitiba. Parabéns e escreva mais sobre o passado que faz bem ao coração.
    Um grande abraço
    Rubens

  2. Parreiras Rodrigues

    …É. E o cara com um tabuleiro pendurado ao pescoço assediando o pessoal nas filas dos cinemas: Balas, pipocas, amendoins, dropis Dulcora, lá dentro não tem bombonière.

    ….E lá na Baixada, anos 60, o cara a percorrer a arquibancada: Pipoca e amendoim torrado. Quem quiser que PIDA!.

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