5:22Uma música com meu nome

por Estrela Leminski

Meu pai, Paulo Leminski, sempre atribuiu a sua veia musical ao lado materno. Ele costumava dizer que a sua família era, em Curitiba, a de maior quantidade de músicos por metro quadrado. Nas festas de família, chegou a contar 18 músicos profissionais.

O primo músico mais reconhecido, porém, ele não conheceu: Waltel Branco.

Primo direto de Áurea, minha avó, Waltel nasceu em Paranaguá em 1929, morou em Mato Grosso, no Rio de Janeiro, em Cuba e nos Estados Unidos.

Nos EUA, tocou com diversos jazzistas, como Nat King Cole, Buddy Guy e Dizzy Gillespie. Especializando-se em trilhas sonoras, trabalhou com Stanley Wilson e com o renomado Henry Mancini, inclusive em “A Pantera Cor-de-Rosa”.

Voltou ao país, a convite da TV Globo, como diretor musical de novelas (adivinhem de quem é o “lerêlerê”, de “Escrava Isaura”, que todos conhecem?). Fez também os arranjos dos discos mais emblemáticos de Tim Maia, Elis Regina, Roberto Carlos, Cazuza, João Gilberto, Cauby Peixoto.

Em suma, não há quem tenha ouvido música brasileira e não tenha escutado criações de Waltel.

Depois de rodar o mundo, veio morar em Curitiba, no apartamento de seus irmãos. O prédio fica na mesma quadra em que eu morava com minha mãe, no bairro do Batel.

Ela, Alice Ruiz, além de poeta e letrista, presidia naquela época a Fundação Cultural. Convidou Waltel para compor o quadro de professores do novo Conservatório de MPB da cidade, ao lado de Roberto Gnattali e Marcos Leite. Era o início da Oficina de Música de Curitiba (cancelada neste 2017 depois de mais de duas décadas), que fez com que a cidade entrasse para a rota musical do país.

Waltel certamente se sentiu mais em casa para voltar. A cena emergente local pedia suas canções. Como não era letrista, pediu algumas para Alice, que se tornou sua principal parceira.

Às vezes a gente também o encontrava por acaso, e eu achava incrível a naturalidade com que ele nos contava coisas espetaculares: “Desculpa não ter ido no teu aniversário, tive que substituir o Paco de Lucía no concerto com a Orquestra de Berlim. É que ele não cuida direito daquela tendinite”.

Para ele, tudo isso é muito bossa nova, muito natural. Como foi compor a pantera cor-de-rosa, Waltel? “Normal. Música é música.” Humor nunca faltou. Por ser negro, ele sempre dizia que perguntavam se ele era baiano. “Baiano sim, mas da baía de Paranaguá.”

Waltel não cabe em caracteres. Tem muito mais do que cabe contar aqui. Não é tão fácil pesquisar, pois vão descobrir que Walter Branco (o nome Waltel foi um erro de cartório que ele só descobriu quando tinha 12 anos; minhas tias-avós o chamam até hoje de Walter) também é Bianco, W. Blanc ou Airto Fogo, codinome que ele criou para os discos precursores do samba-funk.

Em 1999, adolescente, decidi tocar bateria, ele apoiou, me deu as baquetas e os métodos de Gene Krupa e Buddy Rich que eram de seu irmão, Wilson Branco. Wilson tinha acabado de morrer e tocou bateria por anos com Waltel.

Quando eu o encontrava na rua, andava mais quadras para conversar, mas tinha que segurar o passo, pois Waltel já mancava. Era quando eu me atualizava sobre suas histórias fantásticas, do mundo musical ou das pessoas da família que não pude conhecer.

Um dia, chegou dizendo que havia composto uma música pra mim. Como já o tinha ouvido ele dizer o mesmo para incontáveis pessoas, não sonhei que conheceria a tal canção, uma vez que Waltel chega a perder suas partituras.

Por sorte, eu estava bem errada, e “Estrela” é uma de suas músicas mais conhecidas.

Hoje, Waltel tem 87 anos e não fala muito. Sua surdez já está bastante avançada. Mas sempre me pergunta se não estou sabendo de alguém interessado em contratar seus shows. Sim, ele ainda toca. Sua vida é a música.

*Publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo

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Uma ideia sobre “Uma música com meu nome

  1. Raul G. Urban

    Alice e Estrela – como os jornalistas (eu, inclusive) são, em princípio, boêmios por natureza, como não conhecer nomes que são monstros sagrados, a exemplo de Waltel Branco? Acompanhei parcialmente sua trajetória no andar dos 50 anos em que vivo em Curitiba. Verdade que me distanciei da boemia há algum tempo, mas se quisermos encontrá-lo, mesmo quieto, guardado pela idade – para olharmos aquela figura que é um ícone – talvez tenhamos sorte, no fim da tarde ou nas fraldas do início da noite, de Waltel, acompanhado de amigos de seu tempo, e mesmo mais jovens, numa das mesas do Maneko´s Bar. Onde? Ali, na Alameda Cabral, onde degustar pratos clássicos ou tira-gostos (do bife à parmeggiana ao frango à passarinho, ou moela, fígado, dobradinha, na companhia dos bem-tirados chopps) são o cartão de visita de quem está 28 anos onde, no passado, funcionava uma loja de auto-peças, a Copal. Pois é, Waltel, mesmo mais silencioso, mas olhos postos sobre nós, fala despretensiosamente de tempos românticos que já se foram. E também de tempos que virão – mesmo se não hoje otimistas, capazes de serem cercados de poesia. Waltel, obrigado!!

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