4:49O fascínio da Revolução de Outubro

por Ivan Schmidt

Na penúltima semana de cada mês até outubro, esse espaço será utilizado para uma reflexão histórica sobre a Revolução de Outubro de 1917, que esse ano completará seu primeiro centenário.

Como escreveu J. R. Guzzo na Veja esse é um tema sobre o qual “vai se falar, escrever e discursar […] como se o golpe de Estado então comandado por Lênin, com a formação do regime soviético na Rússia, tivesse sido o maior evento da história da humanidade desde que o macaco desceu da árvore para arriscar a sorte na tentativa de levar uma vida inteligente em terra firme”.

Sem concessões ao humor, ao contrário, com a seriedade que caracteriza os historiadores, o francês François Furet em O passado de uma ilusão (Siciliano, SP, 1995), com a tradução de Roberto Leal Ferreira, desvenda o imenso painel da revolução bolchevique e seus atores principais numa série de ensaios sobre a ideia comunista no século XX, que, diga-se de passagem, fracassou.

Dentre os historiadores mais respeitados do Ocidente, o próprio Furet informa que com esse livro fez a estreia propriamente dita em assuntos relevantes do século passado, sendo que o livro apareceu na França cinco anos antes do final do referido período que também encerrou o milênio.

“O regime soviético saiu sorrateiramente do teatro da História, onde havia feito uma entrada triunfal. Ele constituiu de tal maneira a matéria e o horizonte do século, que seu fim sem glória, depois de uma duração tão breve, forma um surpreendente contraste com o brilho de seu percurso. Não que a languidez doentia de que sofria a URSS não pudesse ser diagnosticada; mas a degradação interna estava oculta ao mesmo tempo pela potência internacional do país e pela ideia que lhe servia de bandeira”, resumiu Furet nas primeiras linhas do prefácio.

O universo comunista desfez-se a si mesmo, escreveu também, e “de sua experiência anterior, porém, não subsiste nem uma ideia”, a ponto de os povos que saíram do comunismo “parecem obcecados pela negação do regime sob o qual viveram, ainda que dele herdem hábitos e costumes”.

Com alguma crueldade, mas com inegável visão crítica, Furet é didático ao revelar que “nas ruínas da União Soviética não aparecem nem líderes prontos para assumirem a função dos que partem, nem verdadeiros partidos, nem uma nova sociedade, nem uma nova economia. Só se vê uma humanidade atomizada e uniformizada, e isto a tal ponto é bem verdade que as classes sociais ali desapareceram: até o campesinato, pelo menos na URSS, foi destruído pelo Estado. Os povos da União Soviética tampouco conservaram força suficiente para expulsar a Nomenklatura dividida, ou mesmo para ter um peso grande no curso dos acontecimentos”.

Tal verdade se comprova hoje pelo fato de que Vladimir Putin, que se alterna há anos nas funções de presidente ou de primeiro-ministro, é um ex-integrante da KGB, a famigerada polícia secreta do regime soviético, que em tudo replicou com excessiva fidelidade a sanha policialesca imposta pelos últimos czares.

Furet explica que o fascismo nasceu como uma reação anticomunista e “o comunismo prolongou seu tempo de vida graças ao antifascismo. A guerra jogou-os um contra o outro, mas depois de tê-los associado. Um e outro querem ver apenas um não-ser no espaço que os separa; se, porém, esse espaço lhes for útil, estão prontos a anexá-lo em sua marcha rumo ao poder absoluto, que é sua regra e ambição comuns”.

Em suma, garante o historiador, fascismo e comunismo “são inimigos declarados, uma vez que procuram sua liquidação recíproca; mas também inimigos cúmplices, que precisam para se enfrentarem, liquidar primeiro o que os separa. Assim, mesmo a sede de se combaterem os une, quando a existência de um adversário comum não basta para tanto; o que poderia ser uma definição da atitude de Hitler entre agosto de 1939 e junho de 1941”.

“Com Outubro e os bolcheviques, a revolução assume, com efeito, um papel inédito”, escreveu Furet, pois “não mais carrega a bandeira da burguesia e sim a da classe operária. Pelo menos, é sob essas cores que ela avança, como a realização da demonstração de Marx sobre a queda da burguesia e do capitalismo. A dificuldade do caso está no fato de que esse capitalismo mal teve tempo de existir; a revolução proletária estoura no mais atrasado dos países europeus. O paradoxo alimentou antecipadamente uma interminável discussão no interior do movimento socialista russo e, até a tomada do Palácio de Inverno pelos homens de Lênin, não resolve a questão, pois Outubro pode ter sido apenas um putsch tornado possível pela ocasião e, por conseguinte, carente de verdadeira ‘dignidade’ histórica”.

A interpretação desses fatos, como assevera o próprio François Furet, torna inevitável a associação dos mesmos com a Revolução Francesa, mesmo porque foram os socialistas franceses os primeiros a mergulhar nas águas caudalosas do Outubro russo. “O chefe bolchevique tornou-se Robespierre! Porque o mais espantoso nessa evolução é que Mathiez, quando celebra a revolução soviética, não encontra argumentos mais fortes do que compará-la… à Revolução Francesa”.

Na concepção de Furet, o citado socialista francês não discute apenas as modalidades dos dois acontecimentos, mas julga-os comparáveis porquanto tudo neles é universal: “Ele adora o fato de que a Revolução de Outubro tenha, assim como a de 1789, a ambição de emancipar toda a humanidade. Observação profunda, que toca o fascínio particular de Outubro, comparativamente a Fevereiro, sobre a opinião pública”, tendo em vista que “a derrubada do czar e da autocracia ainda foi apenas um evento russo, trazendo a vetusta Rússia à época europeia, ao passo que a Revolução de Outubro teve como objetivo o fim do capitalismo e a libertação do proletariado. Lênin, aparecendo depois de Kerenski, não é apenas a Montanha depois da Gironda, Robespierre, depois de Brissot. É também o chefe político pelo qual a Revolução Russa se torna universal, ao passo que a Revolução Francesa o fora já em 1789”.

Mal fez o bolchevismo sua entrada na História e já transbordam por todos os lados as circunstâncias singulares da supressão do antigo czarismo. Teoria esotérica antes de 1914, o marxismo de Lênin constitui rapidamente um amplo sistema de crenças capazes de mobilizar paixões extremas nos adeptos e adversários. Para Furet era como se a revolução mais excêntrica da Europa “possuísse, através de seu corpo de ideias, um poder de sedução tão geral que a tornasse capaz de comover com seu exemplo, para além da Europa e das Américas, humanidades em que nem o cristianismo nem a democracia haviam podido realmente penetrar”.

Assim, um acontecimento que nem merecia tanto recebeu a benção da História, em grande parte pela conjuntura excepcional de 1917-1918. Segundo Furet, Outubro de 1917 em Petrogrado coroou o ano em que surgiram as primeiras manifestações coletivas de soldados contra a guerra: “Sinal de emancipação dos povos relativamente à fatalidade do massacre recíproco, a Revolução Russa do outono fez o que os homens de Fevereiro não ousaram fazer; tornada inevitável muito mais por camponeses-soldados do que pela ‘classe operária’, ela voltou a guerra contra a guerra e os homens de 1918 contra suas recordações de 1914. Assim, ela recebe seu brilho mais forte da tragédia que a precedeu: o país mais primitivo da Europa indica o caminho para os países mais civilizados da Europa, cuja história não cessou de imitar, sem ter até então conseguido ter uma ocasião de a preceder. Em suma, à ideia revolucionária, inseparável, desde 1789, da democracia, o bolchevismo vitorioso oferece o prestígio suplementar da paz e da fraternidade internacional”.

Poucos anos depois a Revolução Russa não é só um símbolo; é também uma história. “Podemos até dizer que, em certo sentido – apenas em certo sentido, evidentemente – essa história se encerra com o inverno de 1920-1921. A guerra de intervenção acabou, a contra-ofensiva bolchevique fracassou diante de Varsóvia, em agosto de 1920, o comunismo de guerra arruinou a economia e provocou a fome; o partido é onipotente, mas está isolado, reinando já pelo terror e pela polícia”, constata François Furet.

Depois de rápida viagem à URSS, o filósofo inglês Bertrand Russel não se deixou enganar um instante pelo mito soviético de uma democracia direta de trabalhadores, avaliando que “o bolchevismo é mais aclamado no estrangeiro do que em seu próprio país”, ou seja, “um regime detestado como uma tirania da Rússia, esperado como uma libertação fora da Rússia”. Em síntese irretorquível: “Um fracasso como realidade”.

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