8:14Achados e Perdidos

por Fernando Muniz 

        Pensa no amigo, um cara tão cheio de vida, deve estar se enchendo naquele hospital. A viagem foi cansativa e faz as contas de quanto tempo vai levar naquele trânsito caótico até conseguir vê-lo. Tomara que o horário de visitas não tenha encerrado quando chegar.

Mas agora nada disso importa; seu intestino precisa funcionar, pois sente que as entranhas estão prestes a expelir algo que entupirá o esgoto da cidade inteira.

Apesar dos seus problemas e os do amigo, nota uma carteira marrom, de couro barato, cair ao lado da privada, vinda pelo vão de baixo do banheiro da rodoviária. Mas não avisa o vizinho, por absoluta falta de condições de fazê-lo. Continua os trabalhos de parto.

Finalmente o alívio!”. Apanha a mala e a carteira. Olha para o cubículo ao lado; ninguém. Dá uma volta no banheiro. Ninguém. Põe a carteira no bolso e sai atrás de um táxi.

Chega no hospital a tempo de comer a refeição do amigo. Assim, sem qualquer cerimônia. A amiga, que havia chegado pouco antes, dá risada.

– Você não mudou nada mesmo, parece um gafanhoto!

Abraçam-se os três, felizes por estarem juntos, depois de tantos anos. Tanto a conversar! Tiram fotos, fazem pose como na época do colégio, lembram-se das criancices que faziam, dos amigos que há tanto não veem, de uma vida despreocupada, leve, doce, feliz.

Mas a barriga aperta. Descem para a cafeteria do hospital, ainda aberta. E continuam com a algazarra.

– Mas que perigo! E se o dono dessa carteira for um tarado? Maníaco do parque, ou coisa parecida? Por que você não entregou isso para um dos guardinhas da rodoviária? – a amiga, sempre precavida, dispara a metralhadora de perguntas; não acredita no que o amigo fez.

O rapaz, tão metódico e precavido, fica apavorado. Busca cumplicidade com o seu velho parceiro de futebol de botão, mas ele também é taxativo, meio zombeteiro, mas dando razão à amiga.

– É mesmo, e se o cara for um daqueles terroristas líbios, infiltrado aqui para acabar com a Olimpíada?

– Mas a Olimpíada já acabou! – o rapaz se defende, sem tanta convicção.

– É, mas vai que o cara ficou por aqui “adormecido”, como a polícia fala – agora até a amiga começa a ficar com medo.

– Tem um telefone aí na carteira? – ela pergunta, prática, visto que o rapaz até parar de comer parou.

– Tem sim, tem sim! Mas eu é que não vou ligar! Liga aí você! – e joga a carteira no colo do amigo.

– Eu?! Eu não! Estou amarrado aqui neste hospital. E se ele tiver um daqueles equipamentos de espionagem, que conseguem identificar não só o número, mas também de onde foi feita a ligação? Vai vir aqui e acaba com a minha raça! – anima-se com a própria perfídia. O amigo desaba de vez, apavorado.

– Mas vocês são um bando de frouxos mesmo! Onde já se viu? – a amiga entra de vez na brincadeira. Dá aqui esse número que eu ligo! Dois marmanjos com medinho de ligar para um desconhecido! E nem é bonito. Olha só a foto dele – e examina aquela três por quatro, que estampa um rapaz magrelo, barba por fazer, olhos negros e fundos, tristes, ou melhor, perdidos.

Ficam com pena. Apenas dois reais na carteira, ele deve estar em dificuldades. Pensam em colocar algum dinheiro para ajudá-lo. Mas esquecem, enquanto inventam teorias sobre o magrelo.

– É paraguaio! Olha só o nome dele!

– Não, não, essa cara triste é porque a mulher dele é feia! E mete chifre nele!

– Que absurdo, seus machistas!

Por precaução ela vai atrás de um orelhão, em frente ao hospital, do outro lado da rua. Meio desbeiçado, mas ainda serve para fazer ligações. O rapaz, inicialmente, recusa-se a ir. Mas o outro não pode sair do hospital e fica feio deixar uma moça andar por aí, sozinha. E ela está decidida. Concorda, a contragosto, em escoltá-la. Se bem que, caso alguma coisa aconteça, quem vai ter que acudir alguém é ela.

– Alô? – uma voz tensa, preocupada, a deixa um tanto apreensiva.

– Oi, eu acredito que encontrei uma carteira que pode ser sua. Você perdeu a sua carteira? – ela fica com receio de dar o próprio nome.

– Ah, sim, perdi!

– Você quer a sua carteira de volta? – ela dá um tapa na testa; isso lá é pergunta que se faça? O rapaz, por sua vez, parece não acreditar sequer que a conversa esteja acontecendo. Vê dois senhores aproximando-se com passos lentos. Fica com medo até deles.

– Bom, posso ir buscar na sua casa – a voz do outro lado soa pouco convincente.

– Veja só, eu não sou daqui. Quer se encontrar comigo em algum lugar? – o amigo começa a acenar feito louco, em negativa, quase apoplético.

– Hããã… é, pode ser. Onde fica melhor para você?

Precisa resolver esse assunto logo de uma vez. Quer voltar ao hospital, afinal foi para isso que veio até aqui, não para resolver um problema bobo feito este. Dá o endereço de um shopping próximo, indica uma loja de roupas famosa, estabelece um horário no dia seguinte, próximo ao almoço, para a entrega. E ponto final. E olha para o amigo:

– Você vai!

– Eu? Por que eu?

– Ora bolas, foi você quem achou a carteira!

– Mas foi você quem marcou esse encontro!

No dia seguinte lá está ela, plantada em frente à loja, mofando, louca para resolver o assunto. O dono da carteira se aproxima, furtivo, olhos assustados, apanha rápido o seu pertence, enfia no bolso traseiro da calça e, atrapalhado, não sabe se dá um beijo na moça ou um abraço. Opta por não fazer nem uma coisa nem outra. Mas agradece, um tanto tímido, o esforço dela. E vai embora, apressado.

– Pronto, viu, não doeu nada! E ele nem tirou pedaço de mim! – ela, zombeteira, azucrina o rapaz, incomodado com o desfecho. Aguardam o outro amigo voltar de um procedimento de rotina, junto à televisão da cafeteria, que apresenta o jornal da tarde.

– Eis o retrato falado do Estrangulador do Parque! – o locutor do jornal, solene, anuncia a mais recente evolução de um caso que assusta o país, enquanto um agente policial agita o desenho, mal contendo seu orgulho por ostentar frente às câmeras esse trunfo tão difícil de conseguir.

Os dois se entreolham, assustados. O rapaz da carteira foi parar ali, naqueles traços burocráticos, sem qualquer encanto artístico.

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