20:37De fato e de ficção (final)

por Ivan Schmidt

Em outubro próximo a revolução proletária que aboliu o czarismo russo e deu início ao Estado soviético dominado pelo marxismo-leninismo, completará um século. O regime durou de 1917 a 1991 – por 74 anos – que é o tempo médio da vida de um homem comum.

O romancista cubano Leonardo Padura se valeu desse panorama histórico-político para recontar com base na realidade dos fatos e riqueza de detalhes e informações, com inigualável maestria, a fulminante ascensão do stalinismo que acabou afastando do poder todos os fieis amigos e colaboradores diretos de Lênin, incluindo Liev Davidovitch Trostki, organizador do Exército Vermelho e, anos mais tarde, assassinado no exílio mexicano em 1940, pelo comunista espanhol Ramón Mercader que lutara pela República contra as forças franquistas na Guerra Civil.

Esta, em resumo, é a história narrada pelo fictício Iván Cárdenas, revisor de uma revista de veterinária em Havana, que por um acaso que ele próprio jamais conseguiu entender ou explicar, travou conhecimento com um tal Jaime López, numa das muitas praias da cidade, sempre acompanhado por um casal de cães da raça Borzói, os famosos galgos russos, chamados Ix e Dax.

Daí a expressão que desde o primeiro encontro que se repetiu por anos, até o desaparecimento do interlocutor, o narrador criou para o misterioso personagem do romance: “O homem que amava os cachorros”, aliás, apropriado título do romance de Leonardo Padura (Boitempo, SP, 2013), que estou abordando desde a semana anterior ao carnaval.

Padura, cubano de nascimento e intelectual forjado pelos contratempos e desilusões emanados da revolução chefiada por Fidel Castro, não escondeu a nítida frustração e o desencanto pelo fracasso do regime imposto àquele povo caribenho.

Na medida em que López vai desfiando sua história, Iván é forçado a tirar também suas conclusões e ao referir-se ao interlocutor revela que “o fato de ser o único depositário de um relato capaz de, por si só, demolir os alicerces de tantos sonhos obrigava-me a drenar o horror que tinham me inoculado e me provocava uma espécie de vertigem mental, pior que as vertigens que López sofria”.

Em palavras mais incisivas: “Aquela administração duvidosa dos ideais, a manipulação e a ocultação das verdades, o crime como política de um Estado, a construção cínica de uma grande mentira provocavam-me indignação e novos e maiores temores”.

Iván se interroga à exaustão procurando descobrir que “conjunção astral teria me levado até López e me transformado, segundo ele, no depositário excepcional da história de seu defunto amigo Ramón Mercader, naquele momento me atormentaria a certeza de que o homem que amava os cachorros não tinha chegado à minha vida só por acaso”.

Tempos depois Iván foi procurado por uma mulher negra que havia sido enfermeira de López, que sempre se queixava de uma doença grave, além da fraqueza gradativa que também comprometia a saúde dos cachorros. A mulher lhe entregou um pacote com mais de 50 folhas manuscritas que guardara durante anos, explicando que o recebeu de López antes que partisse para um local não identificado a fim de realizar um tratamento de choque requerido por seu delicado estado de saúde.

Antes de partir, “o companheiro López”, como a mulher o chamava, pediu-lhe que entregasse aquele envelope pardo “a um rapaz com quem tinha feito amizade e deu-lhe meu nome e os dados de onde vivia”.

O manuscrito de López continha o relato dos anos finais do velho amigo Ramón Mercader, especialmente sobre sua entrada no mundo das trevas e a transformação em Jacques Mornard e/ou Frank Jacson, seus codinomes. “Mas também lhe confiara tudo o que, com os anos, tinha conseguido saber sobre si próprio e sobre as maquinações e os objetivos mais sinistros dos homens que o levaram até Coyoacán e lhe colocaram uma picareta nas mãos”, escreveu Padura ao transferir sem reservas suas convicções ideológicas à persona de Iván: “Se antes eu tinha pensado que López excedia com frequência os limites da credibilidade, o que contava naquela longa missiva superava o concebível, apesar de tudo o que, desde o nosso último encontro, eu pudera ler acerca do mundo obscuro, mas tão bem encoberto do stalinismo”.

Com a aproximação da derrota dos republicanos na Espanha, obrigando os assessores comunistas que atuavam em Madri, Barcelona e outras cidades vitais para a resistência  a bater em retirada, foi quando Stalin determinou a necessidade da eliminação física de Trotski, a essa altura já exilado no México. Segundo o relato de López (que Iván logo descobriu tratar-se do próprio Ramón Mercader), ele foi escolhido e treinado com rigor científico a ponto de perder sua própria personalidade a fim de mais seguramente executar o atentado.

O agente de Moscou sempre lhe dizia: “Nós somos soldados e cumprimos ordens. O camarada Stalin sabe que você é o melhor que temos, por isso o queremos no banco, para que, se for necessário, entre e marque o gol. E daqui para a frente lembre-se, em cada segundo de sua vida, de que o mais importante é a revolução e ela merece qualquer sacrifício”.

Afinal, o longo romance histórico de Leonardo Padura ocupa-se exatamente desta que foi uma das mais trágicas e impressionantes sagas do século 20 — a Revolução de Outubro – que sob o pesado tacão das botas de Stalin e de seu regime criminoso mostrou-se ao mundo como “o triunfo da realidade sobre a ilusão filosófica e como um ato inevitável da estagnação histórica”.

Mesmo ele, o frio matador robotizado, fora obrigado a reconhecer que o stalinismo não tinha suas raízes no atraso da Rússia nem no ambiente imperialista hostil, como chegou a ser fartamente insinuado, mas na incapacidade do proletariado de se transformar em classe governante. Padura garante que o teleguiado “teria de admitir também que a União Soviética não fora mais que a precursora de um novo sistema de exploração e que sua estrutura política tinha inevitavelmente de gerar uma nova ditadura, maquiada, quando muito, com outra retórica”.

E o mais terrível de seus crimes não tardaria a ocorrer. No dia 20 de agosto de 1940 (dez dias antes de meu nascimento), Ramón Mercader entrou mais uma vez na fortaleza de Coyoacán, carregando nos bolsos internos da capa de gabardine um revolver Star, um punhal inglês e uma picareta de quebrar gelo com o cabo serrado. Havia combinado nas visitas anteriores levar um artigo para Trotski revisar, pois já tinha certa confiança dos guarda-costas por ser namorado de Sylvia Ageloff, uma das secretárias do exilado.

A cena foi rápida e implacável. Em linguagem cinematográfica, como o fizera Josef  Losey no filme “O assassinato de Trotski”, estrelado por Richard Burton, Alain Delon e Romy Schneider, o escritor cubano diz que o revolucionário leu e achou o artigo uma droga.

“Nesse instante, Ramón Mercader sentiu que sua vítima lhe dera a ordem. Levantou o braço direito, levou-o até atrás de sua cabeça, apertou com força o cabo encurtado e fechou os olhos. Não pode ver que o condenado, no último instante e com as folhas riscadas na mão, virava a cabeça a tempo de descobrir que Jacques Mornard baixava com toda a força uma picareta em busca do centro de seu crânio”.

No dia seguinte Trotski morreu.

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