5:50Me engana que eu gosto

por João Pereira Coutinho

Gosto que me digam as verdades na cara. Todos conhecemos essa frase infame. Comigo, não. Prefiro que me digam tudo nas costas. Na cara, só mentiras. Piedosas, maldosas – isso interessa? Não exijo mais das pessoas. Apenas que tenham esse mínimo de elegância, também conhecido por hipocrisia.

Você consegue imaginar um mundo onde toda a gente diz as verdades na cara de toda a gente?

Provavelmente, ninguém ficaria com cara (intacta) para contar. Quando dizem que alguém falou mal de mim na minha ausência, a admiração que sinto pelo sujeito é genuína. Pode ser um canalha, mas pelo menos é um cavalheiro. O inverso também é válido: quando me criticam diretamente, não é a crítica que me incomoda. É a preguiça em não usar disfarce.

Pena que a hipocrisia tenha má fama. Oliver Burkeman, no “The Guardian”, escreveu há dias um artigo sobre o tema. Dizia ele que os últimos estudos em psicologia explicam definitivamente por que não gostamos de gente hipócrita. O problema está na “sinalização falsa” que o hipócrita emite. Ao defender uma coisa (nobre) e ao praticar clandestinamente um ato (ignóbil) que desmente seu moralismo, ele ganha vantagens imerecidas na competição moral da espécie.

Pior: segundo esses estudos, as pessoas preferem uma criatura rude (ou, pelo menos, um hipócrita arrependido) a um genuíno profissional.

Discordo dos estudos. E explico por que motivo sempre admirei os ingleses. Sim, bons livros. Sim, bons uísques. Sim, boa gastronomia (essa foi hipócrita). Mas a admiração principal está na capacidade deles para o fingimento.

Lembro de ler, sei lá onde (“Economist”?), uma espécie de dicionário em que se traduzia as expressões da polidez britânica para a linguagem comum. De um lado, o que eles dizem. Do outro, o que eles realmente querem dizer.

“Com todo o respeito…”= “Você é uma besta”.

“Corrija-me se estou errado…” = “Não me interrompa”.

“Muito bem!” = “Que bosta completa!”

“Muito interessante!” = “Matem-me, por favor!”

“Talvez seja melhor pensarmos sobre o assunto.” = “Não seja idiota e esqueça o assunto.”

Quando os especialistas perguntam por que motivo a Inglaterra moderna não caiu nos abismos revolucionários ou totalitários da Europa continental, desconfio que a polidez da hipocrisia limou as arestas e tornou o espaço público mais respirável. Só selvagens, ou alcoólatras, dizem tudo o que pensam.

Até porque a mentira tem várias aplicações estimáveis. O escritor Jeremy Campbell, em livro que recomendo (“The Liar’s Tale”, uma impressionante história da falsidade), devolve à mentira a nobreza que ela merece.

Um pouco de mentira pode ser necessário para uma vida feliz ou, no mínimo, serena. Um pouco de mentira é condição básica de sanidade (não é curioso que algumas pessoas sérias só conseguem ter sentido de humor quando enlouquecem de tanta seriedade?). Um pouco de mentira pode ser útil na conservação dos estados e na manutenção da paz civil. Maquiavélico? Sem dúvida. Mas a política é como as salsichas: você não quer saber como certas coisas são feitas.

Enfim, sem um pouco de mentira, onde estariam as artes que tornam as nossas existências suportáveis? Gostamos de Fernando Pessoa porque ele foi o mais mentiroso dos poetas.

No livro, um dos melhores capítulos lidava com as mentiras da natureza –a forma como até os organismos usam a dissimulação para sobreviver.

Um exemplo ficou na memória: as orquídeas imitam os traços dos insetos fêmeas para serem polinizadas pelos machos. Aqui entre nós, não há nenhum homem heterossexual que já não tenha sido enganado por essa experiência. Desconfio que o mesmo vale para as mulheres: ele parecia um príncipe e, afinal, era um sapo. Mas é tudo pela sobrevivência da espécie.

E se Nietzsche, um dos mestres do “ressentimento”, usava esse termo para descrever a forma como os escravos da antiguidade transformaram as suas fraquezas em virtudes (uma crítica direta ao cristianismo), não admira que ele tenha enlouquecido (foi a sífilis, eu sei, mas sejamos metafóricos).

Que se dane o heroísmo! Eu prefiro um mundo com alguma benevolência e compaixão. Quem diz o contrário nunca visitou um shopping center a um domingo à tarde.

Moral da história?

Millôr Fernandes, um dos grandes filósofos do Brasil, falou e disse: em momentos de tensão, o importante é manter a presença de espírito, embora o ideal fosse a ausência de corpo.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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