5:56Massacre da vizinhança

por Ivan Schmidt

Os chocantes morticínios ocorridos há algumas semanas em unidades do sistema prisional brasileiro, verdadeiras sucursais do inferno e o recente banho de sangue na cidade de Vitória, capital do Espírito Santo, onde dezenas de pessoas foram assassinadas em poucos dias, em resultado da falta de policiamento por causa da greve ilegal da Polícia Militar, colocam o Brasil no rol imediato dos países mais violentos do mundo.

Sabe-se que nas prisões a eliminação física de elementos ligados ao tráfico de drogas e a busca de expansão e controle dos espaços de distribuição e venda de entorpecentes, pela facção rival, é a principal causa do morticínio, postando-se a autoridade constituída como mera espectadora dos níveis de sofisticação postos em prática pelo crime organizado.

Mas o crime organizado ou não também está nas ruas em proporção alarmante conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre 2011 e 2015, foram registrados no país 278.839 homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte causadas por intervenção policial, sendo também óbvio que agentes policiais sejam igualmente mortos (embora em número menor), em entreveros com marginais e/ou atentados.

Segundo o relatório esse número de pessoas mortas com violência supera as mortes verificadas na Síria, por exemplo, que há anos está envolvida numa guerra civil.

Em 2015, para citar um fato estarrecedor, foram assassinadas no Brasil 58.383 pessoas — uma pessoa a cada nove minutos, ou 160 por dia. Sergipe, Alagoas e Rio Grande do Norte puxavam a fila dos territórios mais violentos da federação.

Mesmo tratando de um tema diferente (o genocídio dos judeus, da Bósnia e de Ruanda) o sociólogo francês Jacques Sémelin no livro Purificar e destruir — Usos políticos dos massacres e genocídios (Difel, RJ, 2009), coloca uma questão que tem tudo a ver com essa escandalosa situação brasileira: “Como seres humanos podem se transformar, assim, em carrascos de seus semelhantes?”.

Sémelin pesquisou o assunto a fundo para chegar a algumas conclusões sombrias, como a “bestialização” do inimigo, na verdade, “um indício bastante importante para um eventual início de violência contra ele”. O sociólogo lembra o fato de que todos podem usar o nome de animais para provar sua afeição pelo semelhante: “Inversamente, porém, os nomes de animais também servem para marcar a hostilidade que sentimos em relação a determinadas pessoas. A guerra, inclusive, sempre produziu esse tipo de metáfora entre os soldados, que se persuadem, assim, de não estar matando homens. Essa mesma animalização do Outro também pode se desenvolver contra um grupo na proporção do aumento da violência contra ele”.

O barbarismo do assassinato violento no Brasil (outro dia um homem baleou outros dois no interior de uma igreja, na celebração de um casamento), pressupõe que o estágio a que chegou ratifica que o massacre decorre “de uma prévia desumanização das vítimas”, segundo a opinião de Sémelin, ao enunciar de forma didática: “Desde a Idade Média, a palavra massacre significou, aliás, a matança de animais – como, por exemplo, na caça ao cavalo, com cães perseguindo a presa. E a cabeça do javali, troféu exposto no salão do castelo, era chamada demassacre. Dessa maneira, matar ‘feras’ pretensamente humanas, se torna bastante possível”.

A sanha desmedida com que se enfrentaram as facções rivais na penitenciária próxima a Natal (RN), por exemplo, onde um número absurdo de mortes assinou o atestado do rotundo fracasso da política de ressocialização da população carcerária, é também uma demonstração dos níveis de crueldade e desprezo pela vida que atingem determinadas pessoas, vítimas visíveis do desequilíbrio social, da falta de escolarização e de oportunidades de trabalho e dignidade.

A maioria dos mortos foi executada com requintes de barbarismo, a rigor, como se fossem animais merecedores da exterminação pura e simples (cabeças separadas do corpo), algo somente verificado entre os silvícolas mais atrasados e brutais que viveram há séculos.

Uma digressão é oportuna a essa altura, e a ela nos conduz o sociólogo Jacques Sémelin, ao iniciar com a pergunta: “Devemos nos espantar com tal participação do homem de ciência ou da fé na formação de ideais de identidade que podem engendrar a violência?”. Entranhado no tema central de seu livro, o autor sugere um importante recuo histórico, ou seja, os particularmente esclarecedores modos de desenvolvimento da perseguição na Europa, desde a Idade Média.

“Exemplo disso, o historiador americano Robert Moore demonstrou o papel essencial de letrados e de clérigos na justificação e no funcionamento das formas de perseguição, a partir dos séculos XI e XII. Eles definiam elucidativamente quem era o ‘inimigo’ (termo utilizado por Moore): principalmente, os heréticos, os judeus, os leprosos e, mais tarde, as feiticeiras”, escreveu.

Assim, numa aparente e perigosa contradição, por meio de períodos de exclusão, banimento, torturas e mortes, “o saber e a fé foram utilizados para o assentamento das diversas formas de poder político ou religioso sobre o conjunto da população. À influência crescente dos letrados associou-se o desenvolvimento de sistemas punitivos e persecutórios, que vieram reforçar os poderes real e religioso”.

O sociólogo analisa o contexto com esmero científico, cuidando de receitar “particular prudência com relação à função emancipadora da cultura, como modo de ‘elevação’ do homem pela instrução. Claro, os filósofos das Luzes defenderam a ideia de que a cultura constituiu a autêntica via para o pleno desabrochar do indivíduo em direção à sua liberdade. Mas tal convicção precisa ser, no mínimo, nuançada. Com toda evidência, a educação do ser humano é o meio de libertá-lo da miséria, de ampliar seu conhecimento de mundo e de lhe fornecer os instrumentos para agir mais eficazmente, conhecendo as suas leis”.

Contudo, a constatação é inevitável: “No entanto, a cultura não possui em si mesma, a faculdade de conduzir o homem a se libertar da violência. Pelo contrário, pode lhe dar meios para ser mais engenhoso no exercício da violência ou até mesmo da crueldade”.

Sobrevivente do genocídio em Ruanda observou que “a instrução não torna o homem melhor, torna-o mais eficaz. Quem pretende insuflar o mal terá vantagens se conhecer as manias do homem, se entender sua moral, se dominar sua sociologia. O homem instruído, se tiver o coração mal concebido, transbordante de ódio, será mais maléfico”.

O refinado pensador francês chega à síntese: “Por isso, não compreendo quando se demonstra espanto por a barbárie ter podido brotar em uma nação europeia tão culta quanto a Alemanha. A cultura em si não é uma defesa contra a barbárie. Pelo contrário, fornece armas a quem quer justificar, racionalmente, suas emoções e paixões”.

Voltando aos resultados do crime no Brasil, situação que bem poderia ser chamada de “industrialização da morte”, não fosse esse um dos rótulos empregados pelos historiadores aos horrores dos campos de concentração nazistas, pode-se escolher a expressão que melhor serve para defini-la: massacre ou genocídio. Tanto faz.

Um país que contabiliza anualmente cerca de 60 mil mortes violentas entre a população da faixa etária dos 17 a 25 anos, na maioria das vezes sendo os crimes perpetrados por matadores da mesma idade, recrutados como verdadeiros soldados por organizações devotadas a espalhar o mal, não pode esconder que é vítima de um genocídio cometido impunemente contra o que tem de melhor, seus habitantes jovens.

E nem pode valer-se do argumento de estar enfrentando uma guerra intestina que fomenta o ódio racial ou religioso.

Um autêntico massacre de vizinhança, na lúcida definição de Jacques Sémelin, tendo em vista a proximidade física entre carrascos e vítimas. Escreveu ele com impressionante realismo que tais atrocidades correspondem a “matar tendo diante de si o olhar do outro, contemplando o rosto do outro”. Fazendo suas as palavras do filósofo Emanuel Levinas, o professor do Instituto de Estudos Políticos (Sciences Po) de Paris, (re)afirma que “mesmo que o inimigo seja descrito pela propaganda com traços horríveis e perigosos, resta-lhe uma face terrivelmente humana. Seria o motivo, então, para o executor do massacre querer, o mais rápido possível, ‘desfigurar’ o outro semelhante, quebrando qualquer risco de identificação. Poder matá-lo implica desumanizá-lo, não apenas pelo imaginário da propaganda, mas em atos: cortar-lhe o nariz ou as orelhas é a garantia imediata de que ele não tenha mais um rosto humano. A prática cruel é realmente uma operação mental sobre o corpo do outro, visando romper-lhe a humanidade”.

Na penitenciária de Alcaçuz, a ordem dada aos carrascos (e cumprida à risca) foi decepar a cabeça das vítimas.

 

 

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