7:33O embrião e o triângulo amoroso

por Ivan Schmidt

Reparto com os abnegados frequentadores desse espaço alguns apontamentos sobre um dos livros que li entre o final do ano passado e as primeiras três semanas do entrante. Trata-se de Enclausurado (Companhia das Letras, SP, 2016), traduzido por Jorio Dauster, um inusitado romance do inglês Ian McEwan, autor da obra-prima Reparação e tantos outros sucessos como Sábado e Na praia.

Provavelmente o leitor (é o meu caso) jamais havia lido coisa igual, ou seja, uma história narrada por um feto ainda na barriga da mãe. É o entrecho do presente romance de McEwan, que descreve a trama de um triângulo amoroso entre dois irmãos e a mulher do mais velho, sendo esse um poeta decadente e pequeno editor na cidade de Londres, onde a coisa acontece.

O feto que vai crescendo e se desenvolvendo dia a dia tem a capacidade de ouvir as vozes do pai, da mãe e do amante, por sinal irmão do marido como já se informou, e até de intuir, além disso, os movimentos do trio e as tentativas de adivinhar suas caras e bocas.

O narrador do enredo, cujo fulcro é o plano de matar o poeta decadente para que a viúva e o irmão fiquem com a herança, uma casa comprada pelo avô dos dois irmãos, aproveita a oportunidade para comentar com invejável sutileza a qualidade dos vinhos ingeridos constantemente pela mãe e ele próprio por via indireta, pois ela “bebia por dois”, a ponto de se embebedar várias vezes.

Enquanto vai ajuntando os fragmentos do plano diabólico da dupla Trudy e Claude contra John (seu pai), o ser ainda placentário também vai tomando conhecimento do mundo ao qual em breve vai chegar como novo habitante e provável vítima dos horrores que o aguardam. “Uma especialista em relações internacionais, uma mulher sensata de voz grave, me informou que o mundo não vai bem”, conclui ao ouvir uma palestra radiofônica sobre a situação do mundo, logo assumidas como um pesadelo.

“A palestrante mostrou uma visão sombria de nossa espécie, em que os psicopatas constituem uma fração permanente, uma constante humana. A luta armada, justa ou não, os atrai. Eles ajudam a transformar desavenças locais em conflitos mais amplos”, supõe o minúsculo ser ainda na confortável quentura do líquido amniótico.

Segundo a pensadora hipotética que o solerte embrião ouve com atenção, a Europa está em meio a uma crise existencial “porque muitas variedades de nacionalismo autoindulgente estão provando dessa mesma poção saborosa” que se apresenta na forma de “confusão sobre valores, a incubação do bacilo do antissemitismo, os contingentes de imigrantes apodrecendo por falta do que fazer, enfurecidos e entediados. Em outros lugares, em toda parte, desigualdades de riqueza, os super-ricos uma raça de donos do mundo à parte”.

Convenhamos que a carga de informações seja extremamente cruel para um cérebro em formação, embora se reconheça ser útil fornecer ao novo habitante do planeta um vislumbre da realidade que o aguarda. A conferencista prossegue cada vez mais enfática na descrição de um mundo inóspito cujos atributos principais são “a engenhosidade demonstrada pelas nações para desenvolver armamentos novos e brilhantes, das corporações multinacionais para evitar impostos, dos bancos que se dizem honestos para se entupir de dinheiro. A China, grande demais para precisar de amigos ou de conselhos, testando cinicamente o litoral de seus vizinhos, construindo ilhas de areia tropical, preparando-se para a guerra que sabe vir por aí”.

O pano de fundo em elaboração gradativa e inexorável do ambiente que vai receber mais um inocente destinado a pagar o quinhão pessoal pelo direito à vida é sumamente desconfortável, ao sugerir — por exemplo — que os países com maioria muçulmana sofrem os males do puritanismo religioso, da repressão sexual, da imaginação sufocada, conferindo ao Oriente Médio a capacidade de gerar uma guerra mundial.

Os Estados Unidos, a digressão continua, “mal e mal ainda a esperança do mundo, culpados de praticar torturas, impotentes diante de um texto sagrado concebido numa era em que se usavam perucas com pó branco, uma constituição tão improvável de ser questionada quanto o Alcorão. Sua população está nervosa, obesa, com medo, atormentada por uma raiva que não consegue exprimir, desprezando o governo, assassinando o sono com novas armas de mão”.

Num cenário como esse, no qual o romancista Ian McEwan produz um decalque fiel da própria realidade tudo poderia acontecer, inclusive o surgimento de facções sanguinárias como o Boko Haran e o Estado Islâmico, assim como a eleição de Donald Trump, o Visconde de Sabugosa, para a presidência da maior potência política e militar do globo e, por enquanto, suas impensáveis consequências.

O romance chega ao final num ritmo crescente de emoções que envolvem os últimos lances da fuga do casal de amantes, com o bebê ainda no ventre materno e a morte do poeta John Cairncross que os assassinos tentaram passar como suicídio, sendo investigada pela Scotland Yard.

Os leitores cativos de McEwan podem afirmar, sem medo de errar, que o autor de tantos desfechos felizes para os inúmeros romances que escreveu, dessa vez atingiu a plenitude, aliás, coroando o protagonismo do embrião enclausurado em posição totalmente invertida, “sem um centímetro de espaço para mim”, ele ainda reclama, “joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado noite e dia contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto atemorizado com o que me aguarda, pelas encrencas em que posso me meter”.

O final do romance é digno de um dos grandes mestres atuais do gênero e coloca Ian McEwan entre os mais importantes escritores de língua inglesa. Podem acreditar.

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