9:03O Defensor

por Fernando Muniz 

                Olha, vai ser caro. Não é um crime fácil de defender. Tipo hediondo, sabe? Ainda mais com disparo de arma de fogo à queima-roupa. Matar um pai de família na frente da mulher e dos filhos, para roubar…

– Mas doutor, pelo amor de deus, nos ajuda! Não tenho mais para onde ir! E o senhor foi muito bem recomendado – lembra-se do rosto do pastor, logo após a prédica, no templo perto de sua casa. Pálido feito defunto, ao saber que o crime fora cometido por um dos seus fiéis.

– Tudo bem. Converso com o teu marido. Aí a gente vê como fica.

O advogado entra pela porta lateral da delegacia, para escapar da imprensa. Ela se impressiona a frieza dos seus movimentos, o seu jeito de lidar com os policiais, tão seguro e firme, ainda mais diante da repercussão do caso. Fica encolhida em um banco, do lado de fora da sala do delegado, enquanto falam ora mais alto, a ponto de se xingar, logo a seguir em sussurros, em uma coreografia que ela não entende e a deixa muito nervosa. Quase trinta minutos depois ele aparece.

– Daqui a pouco vou falar com o seu marido. Fique aí e não converse com ninguém!

Mais espera. O dia termina.

– Vamos? – o advogado a pega pelo braço. Ela se deixa levar.

Os microfones e flashes de fotografia pulam sobre os dois, assim que saem à porta da delegacia. Aquilo a deixa totalmente atordoada; nem sabe o que responder aos repórteres. Na televisão as entrevistas parecem rápidas. Ali, foi uma eternidade.

– Fique tranquila. Você soou perfeita. Dizer coisas um pouco desconexas traz credibilidade à nossa versão de que o seu marido não é o assassino calculista como os jornais têm pintado.

– O que é “desconexas”, doutor? – Ela olha para ele com um ar desamparado. Tudo aquilo está muito além da sua compreensão, seja a prisão do marido, que, aliás, não dava notícia há meses, seja a rotina da polícia, brutal e agreste, com informações desencontradas e quase que cuspidas em seu rosto, ou as conversas com advogados, um atrás do outro, feito urubus, até encontrar esse último, que fala difícil e conversa com as autoridades de igual para igual.

– Ah, deixa pra lá. Não é importante. Está com fome? Quer comer alguma coisa? – foi a primeira gentileza de alguém desde que tudo começou, quase cinco dias atrás.

Param em uma lanchonete próxima ao escritório dele, um pé-sujo de uns chineses que parecem morar debaixo do balcão, de tão estropiados. Não importa. A fome é grande.

Três pastéis e um refrigerante litro em quinze minutos. Agora é a vez de o advogado se impressionar.

– Vamos ao escritório? Preciso de uma procuração e umas informações. Mas você precisa me dizer a verdade! – lança para ela um olhar duro, que a intimida.

– Já acertei com o seu marido as bases do contrato. Quem é o  “Chulé”?

– Não sei, doutor. Deve ser algum colega dele – ela tenta dar alguma dignidade ao marido, que nunca parou em um emprego e faz tempo não tem carteira assinada.

– Olha, vou começar já um habeas corpus. Essa prisão é ilegal! Inconstitucional até. Pelo que conversei com o delegado o seu marido não foi preso em flagrante. A polícia não prendeu ele lá onde dizem que “supostamente” aconteceu o crime. Nem a arma eles encontraram! A mulher do morto, por sinal, está internada, em estado de choque ou coisa parecida. Que depoimento minimamente crível ela poderia prestar? Essa nossa polícia anda muito despreparada ultimamente.

A mulher, exausta depois de tantos dias infernais, ouve tudo como se estivesse em uma missa. Finalmente uma mensagem de esperança, com palavras boas, ou, ao menos, que soam bonito. Ela relaxa na cadeira. Deixa a bolsa cair no chão.

– Parece uma armação. Acerto de contas. Coisa de dedo-duro. O teu marido não é muito santo não, hein! Mas essa caguetagem não vou falar no habeas. É coisa para conversar com o relator, no Tribunal! – os olhos do advogado brilham, ao pensar os primeiros traços da estratégia de defesa.

É tarde. O vento começa a bater nas janelas, prestes a virar tempestade. Mas parece que o advogado acabara de acordar, animadíssimo com a sucessão de ideias e artigos do Código Penal que cita de cor, enquanto segura a mão dela, costurando em voz alta os argumentos que irá usar, cada vez mais excitado.

– Ah, uma coisa importante: a sua presença no Tribunal vai ser fundamental. Importantíssima! Precisamos passar a imagem que o seu marido é um homem de família, decente, que tem casa, esposa, filhos, enfim, é um sujeito produtivo e sadio, apto a viver em sociedade. Aliás, o pessoal da sua igreja poderia dar algum testemunho sobre ele? Não precisa ser agora. Mais adiante, quando o processo começar de verdade – começa a escrever a petição, possuído por uma alegria excessiva.

– Doutor… preciso dizer uma coisa.

– Pode contar! – continua a dedilhar o teclado, febril, decidido, como alguém capaz de apontar o dedo para o nariz de qualquer desembargador.

– É que… o senhor disse que precisamos dizer a verdade nessas horas e que não podemos esconder nada, certo?

– Certo! – seus olhos fixos na tela do computador.

A mulher solta um suspiro, empina o busto, arruma o cabelo e busca a atenção do advogado, apesar de não saber muito bem o que está a fazer. Nem pensa. Fala. Precisa falar. Melhor, quer falar.

– Doutor, eu não sei se o meu marido vai me querer por perto. É que… é que ele que me tirou de casa. Voltamos depois que o pessoal da igreja insistiu. Mas aí ele foi embora…

– Mas por quê?!

– É que… uns tempos atrás vimos um filme pornô e eu fiquei com aquilo na cabeça… Foi por isso que ele me largou, doutor – coloca as mãos sobre o rosto, envergonhada – Se arrependimento matasse…

– Como assim? Ele te largou por conta de um filme de sacanagem?

– Não… é que… eu comecei a querer dar o cu! Ele acha que isso é coisa de puta. Mas eu vi no filme e fiquei com vontade, nunca fui dessas coisas antes. Ai, meu deus! Vou morrer de vergonha! Nunca contei isso pra ninguém!

O advogado congela na cadeira. Volta-se para aquela mulher, ali, a confessar seus segredos mais íntimos, assustada, sem saída, prestes a desabar. É tomado por um sentimento intenso, avassalador. Busca as mãos dela.

– Mas isso não é coisa de puta – sua voz é grave, tensa. – Gosto muito de comer cu. Adoro mulher que dá o cu.

 

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