7:02Começar de novo

por Ivan Schmidt 

O Brasil vive uma crise institucional sem precedentes, e nesse aspecto concordam em gênero e número o Conselheiro Acácio, a Velhinha de Taubaté, o médico aloprado Simão Bacamarte e, se agradar aos raros leitores desse espaço, o maluco beleza mais genial de todos os tempos, Sancho Pança…

Difícil mesmo é “explicar” com alguma dose de lógica e convencimento quais são as origens da crise, mesmo porque o governo Temer que assumiu o poder federal após o afastamento da presidente anterior, pegou um rabo de foguete que hoje o deslustra como uma das maiores frustrações que se tem notícia em Pindorama.

Com os índices de avaliação beirando quase os rodapés, o presidente Temer faz das tripas coração para recuperar algum terreno (e respirar) com a aprovação da PEC que congela os gastos públicos pelos próximos 20 anos e a proposta da reforma previdenciária para evitar a hecatombe em 2024 que está às portas, quando segundo afirma o próprio governo, não haverá dinheiro em caixa para pagar aposentadorias e pensões.

Será a repetição a nível nacional das calamidades hoje registradas no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais (e alguns outros estados), nos quais os servidores públicos estão recebendo seus salários em parcelas.

A temperatura da pressão continua, no entanto, a subir perigosamente, a ponto de vozes da própria base de sustentação do governo acenarem com a renúncia do presidente e a realização de eleições diretas para a escolha do novo chefe do Executivo. Isso, contudo, se Temer anunciar a renúncia (o que é totalmente descartado) até 31 de dezembro.

Caso a hipótese da renúncia fique para o ano que vem, a indicação do substituto dar-se-á pelo processo da eleição indireta via colégio eleitoral integrado pelos membros do Congresso Nacional.

O vazamento da delação do diretor da Odebrecht, Cláudio Melo Filho, confirmada por Marcelo Odebrecht, tornando obsoleta a discussão para saber quem é o autor da inconfidência, pôs a República de joelhos, fazendo com que muitos lembrassem o editorial censurado do jornal O Estado de S. Paulo – Instituições em frangalhos – quando da edição do famigerado Ato Institucional nº 5, papelucho que acabou transformando o regime de exceção que vigia no país, à época, numa ditadura sem o menor pudor de escancarar sua opção pela tirania e a perseguição.

Em autêntica prática de terra arrasada o delator acrescentou ao inesgotável caudal de informações já catalogadas pelos inquéritos da Operação Lava Jato, a terrificante notícia de que os presidentes da República, do Senado e da Câmara dos Deputados, a saber, Michel Temer, Renan Calheiros e Rodrigo Maia, além de uma infinidade de políticos constam da relação de recebedores de “doações” (algumas abertamente solicitadas pelos interessados) e oriundas do caixa da poderosa empresa de engenharia pesada.

É digna de menção a ortodoxia contábil da empresa que chegava ao limite da suspicácia ou da crueldade mais abjeta, ao anotar ao lado do nome dos recebedores de propinas (todos juram ter declarado à Justiça Eleitoral), os codinomes com que eram identificados pelos corruptores. Todo Feio, Índio, Gripado, Boca Mole e Decrépito, entre outros, fazem parte desse bestialógico.

Guardadas as devidas proporções, e para isso peço a generosa compreensão dos leitores, me aventuro a escrever que o país vive ao final da segunda década no novo século, um clima semelhante ao reinado do Terror que abalou a França nos anos de 1793 e 1794, quando segundo a historiadora Ruth Scurr em Pureza fatal Robespierre e a Revolução Francesa (Record, RJ, 2009), era chegada a hora “de colocar a nova arma que era o Tribunal Revolucionário em mãos capazes de utilizá-la, e foi nesse sentido que Danton, outra vez falando dramaticamente sob a luz de velas à meia-noite, impeliu a Convenção a criar o Comitê de Segurança Pública – um governo revolucionário provisório designado para supervisionar e acelerar o exercício do poder ministerial”.

Todos os juízes e jurados eram indicados pelo Comitê de Segurança Pública ou pelo Comitê de Segurança Geral, o maior dos dois. A Convenção, dominada pelos jacobinos de Danton e Robespierre (Marat já havia sido assassinado por Charlotte Corday) aprovou “a aterrorizante Lei dos Suspeitos: agora qualquer pessoa poderia ser presa e punida com a morte caso demonstrasse ser defensor da tirania, do federalismo ou inimigos da liberdade em função de sua conduta, de seus contatos, de palavras e escritos”.

E mais adiante: “Sob a Lei dos Suspeitos, todos – não apenas os estrangeiros, como antes – eram obrigados a portar um certificado de civismo, que era tanto uma carteira de identidade quanto um selo de virtude cívica. Qualquer pessoa que não portasse uma dessas carteiras estaria sujeita à prisão, e muitos milhares foram presos”.

Não é necessário lembrar qual foi a fonte de inspiração de Hitler e Mussolini, no século passado, e sem medo de errar, dos que emitiam ordens nos porões da ditadura brasileira, assim como decerto se verificou no Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile, países vizinhos também dominados pelo arbítrio.

Entrementes, poucas coisas são mais execráveis que clamar para o Brasil algo semelhante ao clima de terror imposto à França pelos revolucionários que, pouco depois, se tornaram vítimas do próprio veneno. Há alguns ensandecidos que apregoam a volta dos militares ao poder, fazendo vistas grossas ao fato de que o regime de exceção de 1964, que começou brando, com eleições gerais marcadas para o ano seguinte, acabou se transformando num verdadeiro monstro que impôs seu ditado às instituições, extirpando quaisquer manifestações de liberdade de pensamento, fechando o Congresso, nomeando governadores e prefeitos de capitais, proibindo reuniões, censurando a imprensa, enfim, como bem resumiu um de seus próprios generais “prendendo e arrebentando”.

Seria realmente algo impensável supor que a Operação Lava Jato, como alguns chegam a dizer, deveria se transformar num Comitê de Segurança Pública, ou no outro extremo, que deveria ser extinta por ter trazido ao país um sentimento de medo e desarmonia.

A historiadora Ruth Scurr, professora das Universidades Cambridge e Oxford, onde se diplomou, lembra que o Terror permaneceu “por nove meses como o regime oficial da França”, e ao longo desse período “aproximadamente 16 mil pessoas foram oficialmente condenadas à morte, a maioria nas províncias, e houve um número muito maior de vítimas não oficiais que morreram na prisão ou foram linchadas sem julgamento”.

Diz ela ainda que mais de duas mil pessoas foram executadas em Lyon depois que a cidade caiu nas mãos dos revolucionários, e mais de 3,5 mil pessoas guilhotinadas quando a revolta na Vendeia foi finalmente dominada, “depois de enormes perdas no campo de batalha e do assassinato de cerca de 10 mil rebeldes e civis que estavam em retirada”.

O próprio Robespierre sabia que o terror em mãos erradas acaba sendo usado como um instrumento despótico. Seu pescoço, como o de Danton, logo seria decepado pela guilhotina. E esse é um recado claro a todos quantos pensam que o remédio para a crise está no radicalismo inconsequente.

No Brasil bastam as mortes cívicas e éticas de empresários e políticos que se deixaram seduzir pela corrupção, figuras repugnantes que nunca mais terão o respeito da sociedade. Aqui a invenção do médico francês que substituiu a decapitação pela espada, instrumento do Antigo Regime, muito mais sanguinolenta e dolorosa, deve dar lugar à imediata perda dos mandatos, a proibição permanente de suas novas candidaturas e o esquecimento do eleitorado.

Os ideais do Comitê de Segurança Pública devem estar incrustados na consciência de cada cidadão e cidadã, cujo lema necessariamente a partir de agora deve ser: Começar de novo!

 

 

 

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