9:32Sapateiros da República

por Demétrio Magnoli

Marco Aurélio Mello crismou a solução de conservar Renan Calheiros na presidência do Senado afastando-o da linha sucessória como “meia sola constitucional”.

De gambiarras o magistrado entende: foi ele que mandou tramitar na Câmara um processo de impeachment contra o então vice Michel Temer, mesmo se a Constituição não prevê o impedimento de vice-presidente. Mas a sapataria inferior tornou-se ofício permanente dos ministros do STF, que já nem simulam algum apego à tábua da lei.

No templo da Justiça, meia sola é a regra. Em maio, ao suspender o mandato de Eduardo Cunha, a Corte Suprema ignorou o princípio básico de que apenas os eleitos têm a prerrogativa de dispor do mandato dos eleitos. Na ocasião, os juízes ainda afetaram escrúpulos constitucionais, qualificando a sentença como “excepcional”. Contudo, de fato, escudado na aversão popular ao corrupto caricatural, o STF erguia-se como Poder Moderador, árbitro dos conflitos da elite, e prestava ao governo Temer um serviço de higienização.

A sapataria de quinta operou novamente no último dia de agosto, pelas mãos de Ricardo Lewandowski, fatiando a Constituição para preservar os direitos políticos da presidente impedida. De tão porco, o serviço provocou reações nauseadas entre os pares do ínclito juiz –mas jamais foi impugnado pelo tribunal.

É que a manobra ilegal de absolvição parcial de Dilma descortina um caminho de redenção para incontáveis patifes cujos mandatos descerão pelo ralo no curso da megadelação da Odebrecht.

O caso Renan ilustra exemplarmente os mecanismos da conciliação por cima, em meio ao fogo quente da crise. O enredo desenrolou-se em quatro atos farsescos, até um pacto final que celebra a república dos privilégios.

Primeiro ato: em nome da “governabilidade”, o STF posterga decisões sobre 12 inquéritos que envolvem o presidente do Senado. Segundo ato: quando, finalmente, os ministros togados o declaram réu no mais antigo desses escândalos, Renan saca o revólver e ameaça o Judiciário e o Ministério Público com a votação de projetos sobre abuso de autoridade e supersalários. Terceiro ato: sob o amparo de Rodrigo Janot e da indignação das ruas, Marco Aurélio saca sua própria arma, concedendo monocraticamente a liminar de afastamento de Renan. Quarto ato: em nome da “independência dos Poderes”, Renan chama o blefe, unificando a mesa do Senado em desafio à decisão judicial e deflagrando uma confrontação institucional. Epílogo: os lados em conflito firmam nos bastidores um pacto indecente e, olhos nos olhos, lentamente, baixam suas armas.

Justiça? Uma liminar ilegal, inspirada na sentença “excepcional” sobre Eduardo Cunha, não retifica a longa omissão do STF sobre os inquéritos que pesam sobre Renan.

Interesse público? Tanto as partes razoáveis do projeto de lei de abuso de autoridade quanto a urgência de cortar as rendas exorbitantes de magistrados e procuradores foram manipuladas por Renan como pretextos no jogo de chantagem com o STF. De dia, os farsantes gritam à opinião pública. À noite, sussurram com suas respectivas corporações.

De dia, mas ao abrigo de pesadas cortinas, negociou-se o pacto da conciliação. Na véspera da decisão do STF, Cármen Lúcia recebeu o vice-presidente do Senado, Jorge Viana, um embaixador de Renan. A presidente do tribunal reuniu outros seis ministros togados na Sala da Harmonia. Viana terá enfatizado que, na guerra total, seriam empregadas armas químicas: a suspensão da votação da PEC do teto de gastos, destruindo a cidadela do governo Temer e devastando a economia do país. Os sapateiros manufaturaram, então, a meia sola que se conhece.

Terão fabricado outras, que não se conhecem, sobre as perspectivas judiciais de Renan e os supersálarios de juízes e procuradores? É trégua, não paz. Os sapateiros conservam suas armas –e suas habilidades.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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