6:55Casmurro mas brilhante

por Ivan Schmidt

Rubem Braga (1913-1990), “o sabiá da crônica”, como solidariamente me lembrou outro dia o sempre atencioso Zé Beto, titular desse blog, passou a ser tratado dessa forma carinhosa pelo amigo Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que diga-se de passagem volta e meia aparece com algumas de suas joias nesse pedaço iluminado da blogosfera.

Nada mau para quem seria também considerado “o maior cronista brasileiro do século 20”, homem tido por amigos e desafetos como taciturno, aborrecido, casmurro, econômico em palavras e debochado, e por aí afora, mesmo que fosse capaz das maiores demonstrações de respeito, afeição e calor humano.

Pela terceira vez me refiro à leitura de Rubem Braga, um cigano fazendeiro do ar (Globo, SP, 2007), alentada biografia do cidadão nascido em Cachoeiro do Itapemerim (ES), escrita pelo conterrâneo do biografado, Marco Antonio de Carvalho.

Repito o comentário que fiz com o jovem da banca localizada na Praça Osório – há algumas semanas – onde comprei por dez reais o volume de exatas 610 páginas em que se remonta a vida econômica, política e cultural brasileira, assim como se pode acompanhar o desfile das figuras que mais se destacaram ao longo do período decorrido entre 1940 e 1980.

O comentário foi o seguinte: É triste perceber que um dos maiores intelectuais que esse país já teve, tem a biografia vendida por míseros dez reais como um autêntico encalhe. Mas, é também uma sorte para leitores de fino gosto ter ao alcance do bolso obras que a preço de catálogo custariam até sete vezes mais. Ponto.

Aqueles que leram Rubem Braga e outros cronistas, nos anos 60, quando a revista semanal Manchete abriu generoso espaço para o estilo leve, descompromissado e poético da crônica (Otto Lara Resende foi o autor do gol de placa), e mais tarde nos livros, terão imenso ganho ao percorrerem a biografia que abre, dentre outros, com o relato de uma cena testemunhada pelo correspondente do Diário Carioca na Itália, já nos estertores da Segunda Guerra Mundial: a rendição da tropa comandada pelo general alemão Fretter-Pico, que se encerrou às 18 horas do dia 30 de abril de 1945, com a apresentação do oficial superior e seu estado maior, “naquela que foi a mais espetacular façanha da FEB: 14.777 homens entregaram suas armas às tropas brasileiras”.

Em dezembro de 1926, aos 14 anos incompletos, a veia literária de Rubem despontou com a publicação do primeiro escrito de sua autoria. O professor de português pediu aos alunos uma redação sobre a lágrima. “O resultado foi tão bom, na visão do mestre, que o texto daquele menino arredio seria publicado em O Itapemerim, órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, do Colégio Pedro Palácios”, e assim apareceu a primeira crônica de Rubem Braga, “ainda que nada tenha daquilo que o tornou único”, escreveu Carvalho, com o cuidado de anotar que o editor colocou “toda a obrinha entre aspas – como se desconfiasse, como muitos desconfiavam, até os amigos mais próximos, que aquilo não podia ser criação do menino ensimesmado e que alguns achavam um tanto aluado”.

Já profissional de jornal no Rio de Janeiro, com ferino e pragmático senso de avaliação, certo dia fez um comentário sobre o jornalismo: “Talvez isto desgoste meu patrão Assis Chateaubriand, mas é a verdade. Os jornais grandes não exprimem nada, não dizem nada. Passam correndo sobre a vida; são fúteis, insensatos e artificiais”. Que verdade incontestável tantas décadas depois, analisado o estágio atual do jornalismo brasileiro, inclusive com o desaparecimento da maioria dos jornais aos quais Rubem então se referia, além de ter trabalhado em quase todos.

Em 1935, aos 23 anos no Rio, Rubem é repórter de O Jornal, órgão oficial dos Diários Associados, cadeia construída por Assis Chateaubriand com métodos que só Deus sabe, sob a direção do editor Antonio de Alcântara Machado. Segundo o biógrafo, a única máquina de escrever que havia na redação era de uso exclusivo do editor: “Os repórteres escreviam a lápis”.

A profissão de fé de Rubem Braga quanto à opção de ganhar a vida não surpreende por sua objetividade: “Sou jornalista, o que quer dizer; nem um literato nem um homem de ação. Escolhi eu mesmo a minha profissão; não me queixo. Mas ao leitor de livros quero avisar que não escrevi este livro para ele. Tudo que está aqui foi escrito na mesa de redação, entre um telegrama a traduzir e uma reportagem a fazer. Raramente na minha vida escrevi alguma coisa que não fosse publicada no dia seguinte”. A revelação é parte do prefácio escrito para o livro de crônicas O conde e o passarinho, lançado em 1935 pela José Olympio com ilustrações de Santa Rosa e o título sugerido por Jorge Amado, uma das estrelas da casa.

No início de 1947 Rubem e sua mulher Zora Seljan foram viver em Paris, ele como correspondente de O Globo, logo se enturmando com outros brasileiros que também estavam na cidade descrita pelo filósofo alemão Walter Benjamin “como uma biblioteca cortada pelo Sena”.

“A turma era grande: Rubem e Zora, Carlos Reverbel e Olga, Carlos Thiré e Tonia Carrero, Jorge Amado e Zélia Gattai e Carlos Scliar estavam também por ali e todos se reuniam, em longos almoços, no Chez Rosalie, pequeno restaurante em Montparnasse”, lembrou Carvalho.

Os casais Braga e Reverbel, segundo o relato viviam num casarão comum, onde alugavam quartos, na rua Hamelin, 44, Etoile, telefone Passy 61-61. Foi Reverbel quem ouviu de um funcionário da repartição onde fora renovar o passaporte: “Proust morreu no quarto andar, nesse mesmo endereço. Confirmaram a história com a dona da pensão, ficaram muito alegrinhos – mas tiveram vergonha de dizer que, até então, nenhum deles tinha lido uma linha do romancista francês”. Aliás, como vastíssimo número de brasileiros.

Isso não impediu o zombeteiro cronista de reivindicar no retorno ao Rio o título de “mais importante proustiano do Brasil, por ter vivido no quarto onde o romancista morreu”.

É também da curta temporada em Paris, o romance que Rubem viveu com a jovem atriz Tonia Carrero, então despontando como uma das mulheres mais belas do país. Enquanto o marido Thiré gastava o tempo visitando museus e exposições de artes plásticas – era pintor –, Rubem se encontrava com Tonia num pequeno e discreto hotel.

A aventura não se transformou em casamento, mas ambos continuaram a se encontrar na volta ao Brasil até que a atriz cancelou o compromisso, alegando que Rubem não estava a fim de se “amarrar” novamente, embora a paixão o tivesse acompanhado por muitos anos.

O sabiá da crônica, de fato, era muito bom de bico…

 

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