9:11A VIDA POR DELICADEZA

por José Maria Correia

“Perdi minha vida por delicadeza”, disse o poeta Rimbaud referindo-se às vezes em que deixou de agir com a contundência que gostaria.

De fato há que se perder a delicadeza em certas ocasiões, mas há outras em que esta é providencial.

Lembro de uma.

Em 1976 eu chefiava o COPE, o Centro de Operações da Policia Civil, o grupo de elite da época.

Cumprindo uma missão extremamente complexa fui para Campo Grande no Mato Grosso, região de bandidos por aqueles tempos de verdadeiro faroeste, em busca da captura de um dos mais perigosos assaltantes do país.

Orlandão, um negro muito forte de um metro e noventa, exímio atirador e fugitivo da justiça condenado a mais de cem anos de prisão por roubos e homicídios.

Orlandão fisicamente lembraria alguém como zagueiro Thiago do Atlético Paranaense, uma montanha de músculos.

Lá chegando em um pequeno avião Sêneca do governo do estado, logo fizemos um cerco em uma casa de um conjunto habitacional em subúrbio popular.

Eu estava acompanhado de meus homens de confiança os detetives Pegorini, Maciste (outro gigante, porém do bem), o veterano Rodrigues e o novato apelidado de Leite Ninho pela juventude e cabelos claros.

Lá pelas 17 horas entramos simultaneamente pelas duas portas, a da sala e a da cozinha com as armas engatilhadas esperando reação, eu portava uma metralhadora alemã HK calibre 9 mm., a melhor do mundo e os demais escopetas calibre 12.

Pegorini que era campeão brasileiro de tiro de combate ficara na cobertura com a carabina calibre doze de repetição PUMP MOSSBERG, de alta precisão.

Na casa, entretanto estavam somente uma mulher jovem e duas adolescentes, a família de Orlandão, negras como ele, ou afrodescendentes para ser politicamente correto.

O bandido muito precavido por estar constantemente em fuga havia sido avisado da nossa chegada ao bairro por um olheiro e fugira momentos antes.

Eu determinei com firmeza que a casa fosse toda revistada, porém com educação mandei também que as três mulheres aguardassem no quarto vigiadas pelo Leite Ninho enquanto fazíamos as buscas.

Antes de irmos embora sem nada achar o detetive Rodrigues muito esperto cismou com o telhado e lá subindo foi retirando as telhas e embaixo de cada uma havia um maço de cédulas de cruzeiros, a moeda da época.

Acabamos encontrando uma fortuna, uns três milhões de reais, tudo produto de assaltos que trouxemos para a sede do COPE em Curitiba e após para o cofre de um banco.

A família que nada tinha a ver com as ações foi liberada na própria casa sem ser molestada.

Meses depois ainda na busca do Orlandão que continuava assaltando bancos em todo o Paraná acabamos por prendê-lo em outra missão, desta vez no norte do estado e depois de um intenso tiroteio.

Na sede do COPE eu presidi o flagrante e as formalidades e durante o interrogatório o Orlandão me disse o seguinte: “Sabe doutor eu não o matei porque não quis.”

Fiquei intrigado e pedi a ele que esclarecesse.

Ele então me disse – “Naquela tarde quando vocês invadiram a minha casa, eu já tinha saído e estava de tocaia na janela da casa ao lado com um fuzil de assalto AK47 apontado no seu peito e ali permaneci até você irem embora “

E porque não atirou se nos tinha na mira, indaguei.

Ele então me olhando nos olhos e com frieza respondeu-“Porque o senhor doutor tratou minha família com respeito e polícia normalmente não respeita família de bandido, ainda mais sendo negros.”

Orlandão indiretamente fazia referência ao comportamento do temido Delegado Fleury um torturador da repressão que agia covardemente em São Paulo disseminando que para ele –“Mulher de bandido era bandida e filho de bandido era bandidinho”

Ouvi aquela declaração com espanto enquanto lembrava quantos colegas e bons amigos eu havia perdido em situações semelhantes fuzilados impiedosamente em tocaias por bandidos.

Pensei naquele átimo também na minha própria família e nas minhas duas  filhas também adolescentes como as dele, porém vivendo em uma situação mais privilegiada.

Com humildade de quem reconhece um favor de bandido  estendi minha mão em agradecimento.

Afinal, Orlandão já tinha uma centena de anos para cumprir e para ele uma morte a mais ou a menos não faria diferença naquela vida errada e sem expectativa que não fossem fugas e enfrentamentos, violência e mais violência até que em uma curva do destino a morte o emboscasse também.

Depois disso ele foi removido para a Penitenciária onde tentaria novas fugas para voltar ao seu caminho de bandido.

Aliás antes de ser encaminhado para o cárcere Orlandão que era confiado mandou um recado pelos tiras para o gerente do último banco que tinha assaltado:

-“Vocês estão me apertando e pressionando por que está faltando um milhão do último assalto, pois saibam que tem muito gerente que faz festa quando assalto um banco, assim que saio da agência ele fica com uma parte que eu não encontrei ou que ele emprestava por fora para os clientes, garanto que fujo e mato aquele gerente ladrão e desonesto”

Assim são as coisas nesse submundo onde os valores se confundem e a lei da selva impera.

Mas ainda assim há uma certa ética entre ladrões e o policial que não respeitar a máxima da malandragem “ prende, mas não esculacha “ acaba sendo vítima de vingança na base da lei do “olho por olho, dente por dente “.

Aquele dia para mim foi uma lição de vida que recordo mais de três décadas passadas.

Se eu tivesse agido com truculência e covardia humilhando e injuriando aquelas pobres mulheres também vítimas e discriminadas racialmente e pela condição social, não estaria aqui para contar a história.

Meu sangue teria sido derramado naquele esconderijo na Rua das Rosas, Jardim Jockey Clube em Campo Grande.

Fui, entretanto, salvo por delicadeza.

Obrigação é claro, mas nem sempre presente, nem sempre providencial.

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