7:13A política como intervenção

por Ivan Schmidt 

Fazia muito tempo que a disputa pela presidência dos Estados Unidos, a maior nação do mundo, não se apresentava de forma tão conturbada aos eleitores democratas e republicados e aos sem partido, mesmo porque naquele país o voto é facultativo tornando irrelevante pertencer a esse ou aquele grupo.

A sujeira represada durante décadas brota agora aos vagalhões dos porões da poderosa máquina partidária norte-americana, fazendo com que os candidatos Hillary Clinton (democrata) e Donald Trump (republicano) passem a maior parte do tempo acusando ou se defendendo das acusações do oponente.

Não sei se isso chegou a acontecer em outra eleição, mas o atual candidato republicano Donald Trump, que na verdade impôs sua indicação à resistência da cúpula partidária, nessa fase decisiva da campanha (a eleição é dia 8 de novembro), praticamente se sustenta como candidato independente, tal é a distância entre ele e os dirigentes mais destacados do Partido Republicano.

Tendo em vista os avanços da democracia nos Estados Unidos, e as características do sistema eleitoral (o presidente é eleito pelo voto dos delegados estaduais, mas a maioria se estabelece pelo voto popular), a candidatura independente é perfeitamente viável e as facilidades financeiras do arquimilionário Donald Trump e seus doadores não estão nem aí.

Um dado de especial significado na eleição desse ano é que a pátria de Tio Sam poderá ser governada pela primeira vez por uma mulher, Hillary, que se eleita como tudo indica dividirá com o marido Bill, a extraordinária façanha de ser o primeiro casal norte-americano a presidir o país em épocas distintas.

Nascida numa família metodista em Park Ridge, Illinois, Hillary sempre teve uma ligação próxima com o chamado evangelho social. Pertencia a um grupo de jovens da igreja local, mas era a única que jamais faltava aos cultos dominicais. “Ela é realmente uma mulher que se fez na igreja, disse o reverendo Donald Jones, seu antigo ministro e mentor da juventude, à revista Newsweek”, anotou o jornalista Jonah Goldberg no livro Fascismo de esquerda (Record, RJ, 2009).

Na Universidade Wellesley, Hillary foi a primeira aluna em toda a história da instituição a fazer o discurso de entrega de diplomas em sua própria formatura e, desde então, a jovem “cada vez mais se envolveu com a retórica de diferentes movimentos – o movimento jovem, o movimento das mulheres, o movimento contra a guerra – e gravitou na direção de outros que acreditavam que tanto sua geração quanto seu gênero tinham um encontro marcado com o destino”, escreveu Goldberg.

Tempos depois Hillary foi para Yale a fim de fazer o curso de Direito, numa instituição de elite do sistema educacional norte-americano. Essa era uma das típicas racionalizações de estudantes universitários de classe alta nos anos 60. Segundo Goldberg “embora prezassem suas credenciais radicais, também olhavam com desconfiança a ideia de sacrificar suas vantagens sociais”. Foi em Yale que Hillary conheceu Bill Clinton e, levada pelo acaso aproximou-se da extrema esquerda.

Nesse período, chegou a colaborar na edição de uma revista de direito e ação social da própria universidade, na época, uma publicação inteiramente radical que apoiava os Panteras Negras e publicava artigos endossando o assassinato de policiais.

Assim, “a atração de Hillary por grupos e figuras radicais como os Panteras Negras […] e — de acordo com alguns biógrafos – Yasser Arafat, é perfeitamente consistente com a inclinação natural do liberalismo por homens de ação”, lembrou Goldberg salientando que intelectuais ligados a movimentos políticos e sociais mostravam compreensão às atitudes de Mussolini, ao passo que outros “aplaudiram as decisões duras de Stalin”.

O comentarista sugere que o comportamento da geração liberal de 1960 “tinha uma queda inerente por homens que ‘transcendiam’ a moralidade e a democracia burguesas em nome da justiça social. Esse amor por homens duros – Castro, Che, Arafat – está claramente ligado à obsessão da esquerda pelos valores fascistas de autenticidade e vontade”.

Casada com Bill Clinton, na visão percuciente de Goldberg “quaisquer que possam ter sido os sentimentos românticos entre eles, ou que continuem a ser, pessoas razoáveis diriam que se tratava também de um arranjo profundamente político”.

O falecido Christopher Lasch, um estudioso das políticas sociais americanas no século 20 (a informação é de Goldberg) resenhou todos os escritos relevantes de Hillary Clinton para um artigo escrito para a Harper’s, em 1992. “O resultado é uma lúcida (e iluminadora) discussão sobre a visão de mundo de Hillary”, chamada pelo autor como uma moderna “salvadora de crianças”, termo aplicado por historiadores críticos “a progressistas ávidos por inserir o Estado-Deus na esfera da família. Embora ela use argumentos capciosos para dizer que deseja a intervenção estatal somente ‘em casos autorizados por lei’, seu verdadeiro propósito, como admite, é estabelecer uma teoria completa e universal ‘que explique adequadamente o papel apropriado para o Estado na educação das crianças’”.

Uma observação de Goldberg deve ser analisada atentamente: “Desde a República de Platão, políticos, intelectuais e sacerdotes têm estado fascinados pela ideia de ‘capturar’ as crianças para propósitos de engenharia social. É por isso que Robespierre defendia que elas fossem criadas pelo Estado. Hitler – que entendeu tão bem quanto qualquer um a importância de ganhar o coração e a mente dos jovens – observou uma vez: ‘Quando um oponente diz ‘não passarei para o seu lado’, eu digo calmamente: ‘seus filhos já nos pertencem… vocês se irão. Seus descendentes, no entanto, estão agora no novo campo. Em pouco tempo, a única coisa que conhecerão será esta nova comunidade’”.

Na condição de primeira-dama, Hillary não enquadrou sua missão em termos abertamente cristãos, exceto, talvez, quando falava para audiências declaradamente cristãs. Na opinião criteriosa de Goldberg ela cunhou a expressão “que mais essencialmente define o fascismo liberal dos tempos modernos: ‘a política de significado’”. No entanto, o jornalista reconhece que ao afirmar que as políticas de significado e as ideias de Hillary Clinton “em geral são fascistas, devo novamente deixar claro que elas não são más”.

A atual candidata do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos sempre defendeu a ideia de que a nação padece de profunda “crise espiritual” e, portanto “requer a construção de um novo homem como parte de um esforço de restauração e reconstrução que envolva toda a sociedade, levando a uma nova comunidade nacional que proverá significado e autenticidade a todos os indivíduos”.

Goldberg alarga o raciocínio ao dizer que se está diante de uma abordagem da Terceira Via que promete não ser de esquerda nem de direita, mas uma síntese de ambas, sob a qual o Estado e os grandes negócios trabalharão de mãos dadas: “É uma visão fundamentalmente religiosa oculta no cavalo de Troia da justiça social, pois busca imbuir as políticas sociais de imperativos espirituais”.

O pensamento de Hillary sobre o bem comum não necessariamente está balizado por noções de pureza racial ou campos de concentração. Entretanto, a longa análise de Jonah Goldberg conclui que a ex-primeira dama, senadora, secretária de Estado de Obama e candidata à presidência pelo Partido Democrata “extrai suas ideias do mesmo eterno instinto de impor ordem à sociedade, de criar uma comunidade todo abrangente, de deixar para trás as infindáveis disputas e envolver cada indivíduo com o manto protetor do Estado”.

A religião de Hillary “é uma religião política, um evangelho social atualizado – com menos ênfase no evangelho e mais no social – falado em tons tranquilizantes e invocando uma visão confortadora de cooperação e comunidade”.

A meu juízo, um discurso amiúde bombardeado pela insana metralhadora verbal de Donald Trump, sobre quem devo escrever em breve.

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2 ideias sobre “A política como intervenção

  1. Parreiras Rodrigues

    Continuo lendo Ivan, sempre. E, gosto. Cada vez mais. É o cara, como diria Obama.

  2. Ivan Schmidt

    Obrigado Parreiras, de verdade. É esse tipo de incentivo que me anima a prosseguir forçando a cuca a trabalhar… Grande abraço!

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