7:27O DESASTRADO SAMBA-ENREDO DE GALVÃO E GLÓRIA

por Marcos Barrero

Foi-se o tempo dos bons roteiristas na Rede Globo. Já não produzem mais exemplares do ramo como Luís Carlos Miele, Ronaldo Bôscoli, Max Nunes, Hilton Marques e Marcos César,  autor dos antológicos monólogos interpretados por Chico Anysio no Fantástico – numa remota época em que o programa dominical era incrível, fantástico e extraordinário.

Prova disso foi o desastrado samba-enredo composto pela ala dos compositores globais Galvão Bueno e Glória Maria na transmissão de encerramento da Olimpíada, domingo passado. Esqueceram do roteirista.De novo, Boni tem razão (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o poderoso chefão da emissora entre os anos 1970 e 1990). Em seu catecismo doméstico,rezava que toda a programação devia ser gravada e editada. Desse modo, engessada, a Globo falou com o país ao longo de seu reinado. E evitou dois riscos: 1 – encrencar o patrãoDr. Roberto Marinho com a ditadura militar de plantão; 2 – cometer erros e sandices. Programa ao vivo era proibido – eis que o erro era uma certeza.

Domingo, a discutível tese de Boni foi comprovada mais uma vez. Ao vivo, em real time, sem condições de gravar e editar, a transmissão do encerramento da Olimpíada se transformou numa zorra total. Num redemoinho de luzes e dança, no qual o Brasil sonoro se reduziu ao samba e aos ritmos nordestinos, a dupla Galvão e Glória foi anedótica e perpetrou momentos dignos dos trapalhões Didi e Dedé. Em certo momento, Glória trocou o bairro soteropolitano de Itapuã pela binacional, paranaense e paraguaia, Itaipu. Desalojou as bordadeiras de Itapuã, cantada por Vinícius de Moraes e Toquinho, e mergulhou as indefesas senhoras nas águas fundas da Usina Hidrelétrica de Itaipu, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Em seguida, ao ouvir os acordes iniciais de Asa Branca, a repórter especial anunciou que lá vinha o forró. Não foi avisada pela História da MPB que se tratava, isso sim, de um baião. Não ao acaso Luiz Gonzaga, um dos autores da canção, foi eleito o Rei do Baião – um ritmo definido, acompanhado de dança, que vem do lundu. Cruza, lá na frente, com o forró, mas são gêneros distintos. Diga-se, a bem da verdade, que Asa Branca sofreu um ataque duplo na noite olímpica. Galvão, o parceiro de Glória, anunciou apenas Luiz Gonzaga como compositor da música, subtraindo da autoria o advogado e letrista Humberto Teixeira, pai da atriz Denise Dumont, chamado de Doutor Baião. Ainda mais: se não houvesse o gênero,a cantora Carmélia Alves não seria coroada a Rainha do Baião nos áureos tempos do rádio.

Não bastasse desafinar com Luiz Gonzaga, o impávido Galvão seguiu em frente e maculou uma das obras-primas de Tom Jobim. Assim, talvez por influência das lágrimas derramadas por jornalistas e convidados globais ao longo da Olimpíada, num eloquente desserviço ao jornalismo e à neutralidade da informação, Galvão adicionou pranto onde apenas e simplesmente chovia. E, por uma noite, a belíssima Chovendo na Roseira virou Chorando na Roseira. Ainda no capítulo MPB, Glória atribuiu ao cangaceiro Lampião a autoria de Mulher Rendeira. Afirmação temerária. Quem sabe a repórter internacional tenha sido traída pela Wikipédia e por um chute dado no passado pelo respeitável folclorista potiguar Luis da Câmara Cascudo. Não há prova segura de que o Rei do Cangaço seja o autor do xaxado imortalizado na voz de Vanja Orico no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, premiado no Festival de Cannes em 1953. Ainda que Capitão Virgulino dedilhasse uma sanfona e a música fosse conhecida e cantada por seus cangaceiros. Certeza é que o bando atacou Mossoró, em 1927, cantando, em coro, Mulé Rendeira – como também é chamada. Autor? A música é de domínio público.

Gloria ainda disse que as pinturas rupestres do Parque Nacional da Serra da Capivara, no sertão do Piauí, tinham sido feitas por mãos de “anônimos que ninguém conhece” e Galvão avisou o telespectador que o luto era “pelos que se foram”. Glória observou que a cerimônia de encerramento estava dentro do protocolo, mais formal do que a festa de abertura, embora o cenário e os participantes tivessem transformado o Maracanã em Sambódromo, numa desordem saudável, ao som dos gemidos da cuíca. Antes de encerrar, Galvão ainda teve tempo de convocar o diretor da Central Globo de Esportes, Renato Ribeiro, sapateando na informação como os sambistas pisavam o gramado lá em baixo, chamando-o apenas de Renatinho, em vez de dar os detalhes completos a respeito do próprio chefe ao telespectador, como recomendam até mesmo os manuais de jornalismo por correspondência. E Renatinho, em vez de explicar como comandou a transmissão do grandioso evento, botou a mão no bolso, como um pagodeiro no palco do Faustão, e chorou.

      *Marcos Barrero é jornalista, escritor e professor de jornalismo. Trabalhou nos principais jornais, revistas, rádios e TVs do país. Foi um dos fundadores da allTV na internet. Tem mais de 10 livros publicados. Foi diretor e roteirista da Rede Globo, tendo substituído a dupla de roteiristas Miele e Bôscoli no Especial de Roberto Carlos, com direção de Roberto Talma.

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