6:55Uma história do tempo

por Ivan Schmidt

       O passado nunca morre. Ele sequer é passado.

                                                                                    William Faulkner (1897-1962)

Há muitos anos Paulo Francis escreveu na apresentação do romance Giovanni, do norte-americano James Baldwin, que ali estava um livro para o amante das palavras. A mesma opinião tem esse humilde escriba sobre Sartoris (CosacNaify, SP, 2010), com a tradução de Claudio Alves Marcondes ajudando bastante a compreensão, por se tratar de um trabalho primoroso feito a partir de uma prosa densa, não raro barroca e difícil sobretudo nos trechos (muitos) em que William Faulkner se entregou aos chamados fluxos de consciência, uma de suas marcas registradas.

Publicado em 1929, foi nesse romance que Faulkner fixou as linhas que demarcariam sua produção futura, forjando o estilo que o consagraria como um dos autores mais importantes da literatura mundial.

Vale lembrar o comentário de Ben Naparstek no prefácio de seu livro Encontros com 40 grandes autores (Leya, SP, 2010), um jornalista australiano por muitos anos editor da revista The Monthly, de Melbourne, especializado em entrevistas com escritores, que dizia ser a entrevista um relato intensamente subjetivo – como todos os perfis –, afinal “uma narrativa sobre uma vida e seu relacionamento com o corpo de uma obra, sintetizada a partir de uma ou duas horas de conversa para apenas 1.500 ou 2.000 palavras”.

O mesmo se pode dizer de uma resenha com pouco mais de 1.400 palavras sobre um imenso panorama de transformações radicais nos costumes e nos seres humanos, interagindo num ambiente refletido com profundidade nas páginas de um romance que pretende chegar à reconstrução do cenário e de suas raízes ancestrais.

Segundo a crítica Adriana Lisboa, uma família decadente e de longa tradição escravocrata, chefiada pelo coronel John Sartoris (morto na guerra de Secessão), tem na figura de Bayard Velho, filho do coronel, que “nasceu tarde demais para uma guerra e cedo demais para a guerra seguinte”, toda a voragem do inexorável fracasso.

Seus dois netos gêmeos, bisnetos do patriarca, chamados John e Bayard, lutaram na Primeira Guerra Mundial ao lado de muitos outros jovens norte-americanos engajados voluntariamente nas tropas que combatiam os alemães. Ambos pilotos de caças, somente Bayard retornaria vivo da Europa, embora trazendo sobre os ombros o fardo insuportável da morte do irmão em batalha.

Bayard jovem, como é chamado pelo autor, volta para a casa de Bayard Velho e tia Jenny, irmã mais nova do coronel, sem nenhum feito digno de nota a não ser o grande vazio deixado pelo irmão e companheiro de todas as horas. Fascinado por máquinas, Bayard logo adquire um potente automóvel, no qual percorre em alta velocidade as estradas do condado diante da preocupante contrariedade do avô e da tia Jenny, e espanto geral da comunidade.

Quando o romance de Faulkner foi traduzido na França com grande aceitação por parte do público, Jean-Paul Sartre comparou Bayard a um “animal divino que vive sem Deus” na feliz expressão resgatada por Adriana Lisboa, que lembra também o desvario frenético do consumo de litros de uísque em “sombria arrogância”.

Tia Jenny vive aos sobressaltos esperando a notícia de que o jovem Bayard se matou ao volante da máquina potente, vendo nesse autêntico desafio ao perigo uma espécie de maldição da família: “Eles não são os meus Sartoris. Apenas os recebi de herança”.

Faulkner conta a história dos Sartoris, decerto movido pelo conhecimento pessoal da história de sua própria família e de muitas outras que viveram no caldo de cultura propiciado pelos estados do Sul dos Estados Unidos, com todos os ressentimentos da guerra civil, a abolição da escravatura e o maldito signo da discriminação remanescente entre a elite branca, mesmo em processo acelerado de decadência motivada pelos novos ares do industrialismo e da transformação social que sopravam largamente.

Se escrevesse hoje com o mesmo estilo dos anos 30 do século 20, com seu jeito rude e desabrido de se referir aos escravos libertos ainda vivos e seus descendentes (aquela negrada), Faulkner que vinha também de família proprietária de escravos seria execrado por seu linguajar politicamente incorreto.

“O jovem Bayard voltou de Memphis em seu carro”, escreveu Faulkner. Memphis ficava a uma hora e quarenta minutos de Jefferson, onde morava. Subindo pelo caminho de entrada o jovem estacionou o carro comprido, baixo e cinzento diante da casa da família. Tia Jenny desceu para examinar o veículo, os antigos escravos surgiram desconfiados para uma rápida olhada, “mas o Bayard Velho apenas contemplou do alto a coisa comprida e empoeirada, com o charuto entre os dedos, e grunhiu”.

Um dia o jovem Bayard convidou Simon, um dos negros mais antigos na família a dar uma volta de carro, com o que concordou com veementes protestos contra a velocidade. “O carro disparou em meio a um som ribombante, como o de um trovão indistinto. O solo, a inverossímil faixa da estrada, se desfez sob eles, dispersando-se em uma alucinante nuvem de pó, e a vegetação à margem virou um túnel rígido e fluído e incessante. Mas ele não pronunciou nenhuma palavra, não emitiu nenhum outro som, e quando logo depois Bayard exibiu-lhe de soslaio seus dentes cruéis e zombeteiros, Simon estava de joelhos no piso do carro, seu velho e lamentável chapéu sob o braço e uma das mãos ainda fechada sobre uma dobra da camisa na altura do peito”.

Dessa vez foi por um triz que o carro de Bayard não se chocou com uma carroça de negros que trafegava em sentido contrário. Com um movimento rápido do volante o coração saiu do leito da estrada e em zigue-zague arremeteu com um estrondo sem perder a velocidade. Quando finalmente parou, Simon desceu e disse: “Volto a pé pra casa”.

Mas numa outra ocasião, tempos depois, a velocidade era tanta que ao cruzar uma velha ponte de madeira o carro voou literalmente e foi se estatelar de rodas para cima no meio do rio. Um rapaz negro que passava no local com o pai salvou Bayard do afogamento porque ele ficara preso na ferragem retorcida. E por cima com duas costelas quebradas.

Malcolm Bradbury comentou que o neto de Bayard Velho parecia sempre estar a procura de uma morte masculina, ou seja, uma morte de macho, já que havia escapado com vida da guerra. Uma das sequências mais tocantes do romance é a narração do abate do avião de John Sartoris, contemplada pelo próprio irmão que voava a poucos metros sem nada poder fazer.

As bebedeiras infindáveis, as serenatas com um bando de negros tocadores de clarineta e bandolins, as caçadas de raposas com fazendeiros amigos, os dias em que simplesmente sumia de casa sem dar notícias (Jenny se limitava a dizer que assim eram os Sartoris), culminaram no dia em que Bayard pegou o trem e botou o pé na estrada. “Com a barba por fazer, botinas estropiadas, calça de brim suja, o paletó de tweed cinza enxovalhado e o vergonhoso chapéu de feltro, achou um assento vago e acomodou o garrafão sob as pernas”, descreveu Faulkner.

Meses depois tia Jenny começou a receber cartões postais, primeiro de Tampico, depois da Cidade do México, até chegar o telegrama com o primeiro pedido de dinheiro. “E este foi o derradeiro sinal de que pretendia permanecer num local o tempo suficiente para que alguma mensagem o alcançasse, embora vez por outra indicasse, por meio de cartões postais vistosos, com o seu jeito brutal e soturno, onde havia passado”.

Adriana Lisboa, na síntese do romance Sartoris diz que “as ações deslizam por entre nossos dedos”, fazendo com que “os grandes acontecimentos são apenas sugeridos, e o que se descortina são suas consequências”.

Na pachorrenta e empoeirada Jefferson, capital do condado imaginário de Yoknapatawpha, tia Jenny e Narcissa Benbow, ao que parece mulher de Bayard (embora Faulkner não tenha escrito se houve casamento), esperam o nascimento da criança que a jovem leva no ventre. Quando Bayard passou várias semanas enfiado num colete para curar as costelas quebradas no acidente, Narcissa ficou quase todo o tempo a seu lado e aí pode ter acontecido alguma coisa que Faulkner deixou de lado.

Tia Jenny, empolgada e autoritária como sempre foi dizia que se fosse menino iria se chamar John. Mas, Narcissa retrucava: “Não é John o nome dele. É Benbow Sartoris”.

“E você acha que isso vai fazer alguma diferença? Você acha que pode mudar algum deles com um nome?” indagou Jenny.

Narcissa estava ao piano, que tocava bem e continuou a tocar como se não estivesse ouvindo: “Atrás da cabeça aprumada e ensombrecida da srta. Jenny, as cortinas rutilantes pendiam imóveis; e, além da janela, a noite era um sonho sem brisa e lilás, mãe da quietude e da paz”.

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