6:22De fantasia e realidade

por Ivan Schmidt 

Somente por esses dias comecei a ler Submissão (Alfaguara, RJ, 2015), romance escrito pelo francês Michel Houellebecq, originalmente lançado em Paris no ano passado e, numa coincidência jamais imaginada na mesma semana em que a edição do Charlie Hebdo chegava às bancas, com a charge da capa sobre o escritor e o aparecimento do polêmico livro.

É possível supor que a publicação do romance tenha precipitado a ação dos terroristas que atacaram a redação do semanário de humor, que nada poupava incluindo a religião islâmica e, principalmente, o profeta Maomé. Michel tinha um amigo (Bernard Maris) na equipe de editores do Charlie, e chocado com sua morte no atentado suspendeu a promoção do romance e saiu por uns tempos de Paris.

A trama ficcionista ocorre na França no ano de 2022, quando para combater a Frente Nacional, partido de extrema direita e franco favorito para eleger o presidente, o Partido Socialista une-se à conservadora UMP para a formação de um partido muçulmano – Fraternidade Muçulmana – cujo candidato Mohammed Ben Abbes será eleito para a presidência da República. O protagonista do romance é François, professor de literatura na Universidade de Paris III, que algum tempo depois da posse de Abbes perde o emprego por não ter se convertido ao maometanismo.

Um dia depois do lançamento, Submissão já ocupava o primeiro lugar na lista dos mais vendidos da Amazon francesa, e seu autor passava a ser acusado de islamofobia e racismo. Nas muitas declarações dadas à imprensa, Houellebecq disse não conhecer romance que tivesse mudado o curso da história, que não tomava partido e que tampouco sua ficção dificilmente se tornaria realidade, embora acreditasse na vitória de Marine Le Pen em 2017.

François, o narrador do romance, apolítico por gosto e definição, dizia que “muitos homens se interessam pela política e pela guerra, mas eu apreciava pouco essas fontes de diversão, sentia-me tão politizado quanto uma toalha de rosto, o que era uma pena”. Num depoimento que pode ser subscrito pela juventude de um vasto país localizado abaixo da linha do Equador, na verdade o jovem intelectual admitia que “as eleições não tinham o menor interesse; a mediocridade da oferta política era até surpreendente”.

Foi em 2017 que as coisas começaram a se mexer de verdade: “A imprensa internacional, estarrecida, assistiu a esse espetáculo vergonhoso, mas aritmeticamente inelutável, da reeleição de um candidato de esquerda num país cada vez mais abertamente de direita”. As coisas correram de tal forma que em poucas semanas “um ambiente estranho, opressor, se espalhara pelo país”, até que um mês depois dos resultados do segundo turno, Mohammed Ben Abbes anunciou a criação da Fraternidade Muçulmana, que se seguiu à primeira tentativa de islã político, o Partido dos Muçulmanos da França.

A iniciativa anterior, entretanto, fora rapidamente abortada devido ao constrangimento causado pelo antissemitismo de seu líder: “Tirando as lições desse fracasso, a Fraternidade Muçulmana ficara atenta em conservar uma postura moderada, só apoiava a causa palestina com moderação e mantinha relações cordiais com as autoridades religiosas judaicas”. O romancista escrevia ainda que “num país em que a miséria da massa continuava indiscutivelmente, ano após ano, a se espalhar, essa política de rede dera frutos, e permitiu à Fraternidade Muçulmana ampliar sua audiência bem além da moldura estritamente confessional, e o sucesso foi até mesmo fulgurante”.

Deu-se também por uma dessas casualidades fortuitas que dão sabor ao nosso cotidiano, a propícia publicação pelo diário espanhol El País do artigo semanal do Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa, resenhando o romance em questão. Em verdade, os críticos do próprio jornal já haviam elegido Submissão um dos dez melhores romances publicados em 2015.

Também extraordinário ficcionista, autor de alguns dos mais disputados romances latino-americanos (Conversas na catedral, Tia Julia e o escrevinhador, A guerra do fim do mundo, O sonho do celta, entre outros), Llosa sentiu-se inteiramente à vontade para deixar fluir a imaginação sobre as peripécias inventadas por Michel Houellebecq, como a que segue: “Acaba de haver eleições gerais na França e a Irmandade Muçulmana ganhou confortavelmente: socialistas e republicanos, temendo que a Frente Nacional de Marine Le Pen pudesse chegar ao poder nestas eleições, garantiram aquela vitória. A França que foi outrora cristã, depois laica, tem agora, pela primeira vez, um presidente muçulmano, Mohammed Ben Abbes”.

“O país mostra uma insólita passividade frente ao processo de islamização, que começa muito rapidamente no ambiente acadêmico”, descreveu o narrador peruano que há décadas vive em Madri. “A Arábia Saudita patrocina com munificência a Sorbonne, onde os professores que não se convertem devem se aposentar, isto sim, em excelentes condições econômicas. Desaparecem as salas de aulas mistas, e os antigos pátios se enchem de jovenzinhas com véu. O novo reitor da universidade, Rediger, autor de um best-seller que vendeu três milhões de exemplares, Dez perguntas sobre o Islã, defende a poligamia e a pratica: tem duas esposas legítimas, uma veterana e outra de apenas 15 anos”, acrescentou.

Expulso da universidade François se torna um perspicaz observador da nova realidade, vendo por exemplo que a política externa francesa se dedica à aproximação da Europa, especialmente da França, de todos os países árabes, “com um fanatismo tranquilo”, ao passo que contempla uma sociedade que perdeu o élan vital, “resignada diante de uma história que parece tão irremediável quanto um terremoto ou um tsunami, sem brilho ou rebeldia, submetida de antemão a tudo que o destino proporciona”.

Llosa informa que basta ler “algumas páginas desse romance de Michel Houellebecq para entender que o título se encaixa como uma luva: Submissão. Com efeito, essa é a história de um povo subjugado e vencido, que, doente de melancolia e neurose, contempla seu próprio desaparecimento e é incapaz de mover um dedo para impedi-lo”.

O romance, no dizer de Vargas Llosa, bem montado e amarrado pelo autor, também se parece com um “testemunho psicanalítico sobre fantasmas macabros de um inconsciente coletivo que tortura a si mesmo infligindo-se humilhações, fracassos e uma lenta decadência que o levará à extinção. Como este livro foi lido com avidez na França por um enorme público, cabe supor que nele se expressam sentimentos, medos e preconceitos que vitimam um importante setor da sociedade francesa”.

Para o Prêmio Nobel é algo impensável que aconteça na França o que o romance “parece profetizar”, o que seria “um retrocesso tão radical à barbárie do país que entronizou pela primeira vez os Direitos do Homem, o berço das revoluções”. Muito embora consiga distinguir nuanças que ajudam a esclarecer que “talvez semelhante pessimismo se explique lembrando que a modernidade golpeou sem misericórdia a França, que nunca soube se adaptar a ela – por exemplo, continua arrastando um Estado macrocefálico que a asfixia, e benefícios generosos que não pode financiar – ao mesmo tempo que o terrorismo se encarniçou em seu solo impregnado de insegurança e desmoralização de seus cidadãos”.

Também a questão política, e o decadentismo que assalta seus praticantes marcados pela perda completa da capacidade de se renovar, aliás, presumida por François desde a juventude, no dizer de Vargas Llosa “explica o crescimento frenético da Frente Nacional e o retrocesso ao nacionalismo tribal míope que seus líderes propõem como remédio para seus males”.

Assim, os fantasmas que assombram hoje a vida política francesa ganham forma e consistência de maneira muito eficaz no romance de Houellebecq, que segundo o consagrado autor peruano certamente contribui para disseminá-los. A seu ver isso é feito “com perícia literária e uma prosa fria e neutra”, tornando difícil ao leitor “não sentir alguma simpatia por François e tantos infelizes como ele, sobre os quais se abate a desgraça sem que atinem em oferecer a menor resistência a acontecimentos que, como diria o bom e velho Monsieur Bovary, parecem ‘culpa da fatalidade’”.

Llosa não esqueceu de tocar numa questão essencialmente veraz e preocupante, lembrando que a população muçulmana na França é, comparativamente, a mais numerosa da Europa, mas também que se trata “da menos integrada e que a tensão e a violência que às vezes irrompem entre ela e o resto da sociedade se devem em boa parte ao estado de marginalização e desenraizamento em que se encontra”. Por outro lado, diz, “é importante lembrar que o maior número de vítimas do terrorismo dos fanáticos islâmicos são os próprios muçulmanos e que, portanto, é irreal apresentar essa comunidade como sendo coesa e integrada política e ideologicamente, como faz o romance de Houellebecq”.

Como se percebe Submissão, mesmo sendo uma leitura ficcional, perturba, e muito, por seu elevado teor de preconceitos, xenofobia e paranoia “inspirados por essa fantasia sinistra, aquela sensação mentirosa de que o futuro é determinado por forças contra as quais o homem comum é impotente e não tem outra escolha senão acatá-lo ou cometer suicídio”, pondera Vargas Llosa.

Afirmando que as conjecturas do romancista francês estão muito além “de qualquer licença poética”, Vargas concluiu pela irrealidade da suposição de que uma das sociedades mais vanguardistas do mundo em questões sociais – de sexo, religião, gênero e direitos humanos em geral – “poderia regredir a práticas medievais como a poligamia e a discriminação da mulher com a facilidade com que descreve Submissão”.

Se o fatalismo que a ficção encarnada em François fosse verdade “nunca teríamos saído das cavernas”, arriscou o mestre peruano.

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