5:05Boris Schnaiderman, adeus

Do jornal O Globo

Morre, aos 99 anos, o tradutor Boris Schnaiderman
Autor foi o responsável pelas primeiras traduções diretas no Brasil de Dostoiveski

Um dos maiores nomes da tradução no Brasil, o tradutor Boris Schnaiderman morreu na noite desta quarta-feira, em São Paulo, aos 99 anos.

Pioneiro na difusão da literatura e da cultura russas no país, ele foi o responsável pelas primeiras traduções diretas no Brasil de Dostoiveski (“Os irmãos Karamázov”, publicada em 1942).

Schnaiderman também foi responsável por verter para o português obras de vários outros autores, como Púchkin, Tolstói e Tchékhov.

Seu trabalho inspirou gerações de tradutores, pesquisadores e leitores.

Nascido em Úman, na Ucrânia, em 1917, ano da Revolução Russa, ele veio com a família para o Brasil em 1925.

Além de dezenas de traduções, publicou dois livros: o romance “Guerra em surdina” (2004) e o volume de memórias “Caderno italiano”, lançado em 2015.

Ambos partem de uma experiência decisiva na vida de Schnaiderman: sua participação na Força Expedicionária Brasileira (FEB) e na campanha de Monte Castelo, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial.  

Boris Schnaiderman, um pacifista na linha de frente

Aos 98 anos, pioneiro na divulgação da literatura russa lança memórias da 2ª Guerra

Boris Schnaiderman vive com a mulher, a professora Jerusa Pires Ferreira, no bairro de Higienópolis, centro de São Paulo, em um apartamento repleto de livros. Os volumes, que o casal não contou até hoje, estão por todas as partes, até mesmo nas cozinhas e nos banheiros.

Sua biblioteca e a literatura são uma paixão antiga do escritor, tradutor e professor de 98 anos nascido na Rússia e naturalizado brasileiro.

Responsável por versões brasileiras dos maiores clássicos da literatura russa, como Púchkin, Dostoiévski, Tolstói e Tchekhov, ele recorda outro lado de sua vida no livro “Caderno italiano” (Perspectiva), sobre sua participação na Força Expedicionária Brasileira (FEB) e na campanha de Monte Castelo, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial.

É o segundo livro que Schnaiderman escreve sobre o assunto. O primeiro, “Guerra em surdina” (1964), era uma ficção, que só terminou de escrever 19 anos depois de voltar da incursão italiana. Tinha dificuldades, diz, porque muitas pessoas envolvidas nos fatos relatados ainda estavam vivas:

— Tenho tentado a ficção em várias ocasiões, mas não sou ficcionista. Eu me dou bem com texto de memória. Consegui esse livro (“Guerra em surdina”), mas quem lê percebe que tem muito de memorialismo ali. Coloquei lá um personagem fictício, mas coisas que aconteceram comigo ou com companheiros meus ou que poderiam ter acontecido. Mas certos fatos eram difíceis de expor naquela ocasião porque as pessoas estavam ali. Muita gente ia ficar ofendida — diz Schnaiderman.

Ele nasceu em 1917, ano da Revolução Russa. Originário de Úman, na Ucrânia, foi com a família para Odessa em razão da perseguição aos judeus. Ficou na cidade litorânea até 1925, quando veio para o Brasil. Um ano antes de partir, conta ele, presenciou a filmagem de um clássico seminal do cinema, “O encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein.

— Tenho uma memória bem viva desse momento. Vi filmarem a cena da escadaria e do momento em que os marinheiros comemoram a vitória da rebelião. Lembro-me da câmera, só não lembro de ver Eisenstein — diz ele, com ênfase na pronúncia russa do nome do cineasta.

“Caderno italiano” começa em 1938, quando o autor estava no segundo ano da Escola Nacional de Agronomia, no Rio de Janeiro. Morava com a família em um “bangalô modernoso” no bairro de Ipanema. Ao se formar engenheiro agrônomo, dois anos depois, naturalizou-se brasileiro para “validar” o diploma e fez o serviço militar no Exército, segundo ele mesmo, para ter um treinamento mais rígido. Acordava às 4h para sair de casa, em Copacabana, a tempo de chegar às 7h no quartel, em Campinho.

Após o serviço militar, o engenheiro agrônomo que escondia uma paixão secreta pela literatura conseguiu emprego no Ministério da Agricultura. Ficava lotado no Instituto de Ecologia Agrícola, no quilômetro 47 da antiga rodovia Rio-São Paulo. Muitas vezes, dormia na “repartição” em uma “cama de vento” e, nos momentos de ócio, batia à máquina de escrever traduções do russo e poemas.

É dessa época sua primeira tradução assinada, de “Os irmãos Karamázov“, de Fiódor Dostoiévski, para a editora Vecchi — lançada em 1942. Schnaiderman não gostou da edição, em dois volumes.

— A capa era muito feia, mal desenhada. Com a tradução levei outro susto. Fiquei muito frustrado. O revisor gostava de textos com português castiço e Dostoiévski tem uma linguagem mais solta. Depois, refiz a tradução. Um texto como o dele é riquíssimo, sempre há meios de melhorar. Aliás, tenho revisto as minhas traduções e modificado bastante.

 

SOB FUMAÇA EM MONTE CASTELO

Em 1944, veio a convocação para a guerra. Embora se considerasse um pacifista, Schnaiderman achava necessário combater o nazismo.

— Não era possível ficar indiferente diante daquela situação catastrófica. Ainda não se tinha notícia precisa sobre aquilo que veio a se chamar o Holocausto. Mas pelos jornais se percebia claramente o que estava em curso.

Na Itália, ficou na encosta do Monte Castelo, cenário de enfrentamentos com tropas do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Lembra que os soldados brasileiros viviam sob um manto de fumaça, produzida por uma máquina dos americanos com o objetivo de dificultar a visão dos pilotos de aviões inimigos.

— Lembro muito bem do cotidiano. O comando, pelo jeito, viu que estávamos em um lugar perigoso e nos transferiram. Ficamos na encosta do Monte Castelo durante um mês e meio.

Após um ano de combates, Schnaiderman voltou ao Brasil e teve dificuldades para se readaptar. Eventualmente, deixou o trabalho como engenheiro e investiu de vez na de professor e tradutor de russo. São dele algumas das principais traduções de obras seminais da literatura russa, de autores como “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, e “Um jogador”, de Dostoiévski.

Seu único aborrecimento, conta, é ver o pouco valor que se dá ao sacrifício de 25 mil brasileiros que, como ele, participaram da campanha da FEB.

— Nem falo dos jornais, que lembram isso pelo menos uma vez por ano. Mas o povo esqueceu. Outro dia, um jovem com diploma universitário me perguntou se realmente entramos em combate.

 

 

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