15:38Escravos do lixo reciclável

Nunca é tarde! Na edição do final de semana da Gazeta do Povo, o jornalista Felippe Aníbal publicou excelente reportagem sobre o drama dos carrinheiros de Curitiba que ficam dependentes, como escravos, de donos de barracões de depósitos clandestinos. Para quem não leu, eis a íntegra:

Barracões clandestinos mantêm escravos do lixo reciclável

Donos de barracões clandestinos mantêm grupos de catadores em condição de exploração e miséria na capital

Os materiais recicláveis se amontoam, abarrotando um dos barracões que servem de depósito, em uma viela da Vila das Torres, em Curitiba. À beira das pilhas de papelão, sucata e vidro, se espremem oito cômodos de madeira que compõem uma espécie de cortiço. Em cada quarto, vive uma família de catadores – todos relegados a uma condição análoga à escravidão. São vítimas de um esquema no qual, em troca do empréstimo do carrinho e do aluguel do quarto, se obrigam a vender ao dono do barracão tudo o que catam, mas por preços bem menores do praticado no mercado. Encontram-se presos a essa dinâmica de exploração.

Não se trata de um caso isolado. A Gazeta do Povo teve acesso a três depósitos de materiais recicláveis. Todos mantinham catadores atrelados por meio do aluguel de quartos diminutos – chamados “peças” – e do fornecimento de carrinhos. A partir de entrevistas com catadores, a reportagem identificou mais de uma dezena de barracões que funcionam a partir dos “escravos”, em diversos bairros.

Enquanto o setor de reciclagem movimenta R$ 12 bilhões por ano no Brasil, esses trabalhadores vivem na miséria. Em média, recolhem 300 quilos de recicláveis por dia, pelos quais recebem entre R$ 30 e R$ 60 (dependendo do tipo do material). Registro em carteira e outros direitos básicos não passam de sonho. Por sua vez, os barracões chegam a vender o volume trazido pelos catadores pelo dobro do preço. Funcionam como atravessadores, que se mantêm a partir dessa modalidade de exploração. Permanecem na clandestinidade, sem registros ambientais ou vistorias.

“Presos”

A filha de Anderson* e Aline*, ambos com 21 anos, acabou de completar um ano de idade, mas seu mundo se restringe aos muros do depósito onde a família vive. Todos os dias, o rapaz percorre mais de 20 quilômetros para “puxar papelão”. A esposa fica cuidando da criança na “peça” que ocupam, alugada por R$ 60 por semana. Trata-se de um cômodo que não chega a dez metros quadrados, onde um pedaço de espuma suja serve de colchão.

“Eu me sinto como um cavalo, mas ‘tô ‘amarrado’ por causa do aluguel. Eu ‘tô preso ao lixo (…) Eu queria outro lugar, [em] que pudesse puxar papel e não sofresse tanto”, diz o rapaz, que de segunda a sábado sai para fazer a coleta, faça chuva, faça sol. “Se não for pra rua, o homem [dono do barracão] cobra, fica bravo, faz pressão. E tem que voltar sempre com o carrinho cheio. Não tem conversa”, acrescenta.

Há um ano e meio, José Marcos*, de 53 anos, está vinculado a um mesmo barracão. Vende o papelão que coleta a R$ 0,17 o quilo, que é repassado pelo “chefe” por R$ 0,30 a uma empresa de reciclagem. Na avaliação dele, a falta do instrumento de trabalho e de um local onde possa separar os materiais o impede de se libertar do esquema. “Eu fico preso ao dono [do barracão]. Se não tivesse, poderia escolher quem tivesse melhor preço. Infelizmente, eu ‘tô sujeito a isso”, lamenta.

*Os nomes foram substituídos para proteger os trabalhadores

 

Procuradora diz que esquema configura trabalho escravo e persiste há décadas

O Ministério Público do Trabalho (MPT) classifica como “trabalho análogo à escravidão” a condição dos catadores mostrados pela Gazeta do Povo. Há três décadas o órgão diagnosticou este tipo exploração, mas Curitiba segue incapaz de erradicar a prática.

“Eu não tenho dúvidas de que estejamos diante de uma condição análoga à escravidão. O empregador é que deve ser responsável para que os trabalhadores tenham condições de trabalho. Alugar ferramentas e expor os trabalhadores a moradias nessas condições são elementos que comprovam”, aponta a procuradora do trabalho Margaret Carvalho.

Na década de 1990, o MPT detectou um esquema semelhante, a partir de denúncias. A investigação culminou com uma ação civil pública interposta em 1999, que fez com que a prefeitura de Curitiba, à época, criasse um programa de cooperativas de catadores. Apesar das cobranças, a exploração persiste. Em 2009, Gazeta do Povo mostrou dinâmica parecida. Para a procuradora, tem havido falhas na fiscalização.

“Quem tem a obrigação de fiscalização é o município, que pode, inclusive, determinar a interdição dos barracões. Se não tem alvará, não está em condição de trabalho, de habitação, o município tem que interditar. É isso que temos exigido”, disse. “A responsabilização criminal [pelo trabalho escravo] pode ser tanto do dono do barracão quanto do município, que tem responsabilidade solidária”, acrescenta.

Os dois últimos embargos – em que os barracões precisaram paralisar as atividades – datam de 2007. Responsável pela fiscalização, a Secretaria Municipal de Urbanismo informou que “nos últimos anos” houve 12 ações fiscais: seis notificações e seis autuações. A pasta acrescenta que as vistorias são feitas “a partir de reclamações da população”.

 

“Eu só ganho uns centavinhos por quilo”, diz dono de barracão

Felippe Aníbal

Dois proprietários de depósitos de recicláveis que concordaram em dar entrevista sob a condição de anonimato consideram que estão “ajudando” os catadores e que a formalização dos barracões inviabilizaria o negócio. Para eles, os trabalhadores não vivem em condição de escravização, mas de pobreza, e que estariam “pior” se não fosse a coleta de materiais.

“Eu só ganho uns centavinhos por quilo: R$ 0,07, R$ 0,10, R$ 0,15… É coisa pequena”, diz o dono de dois galpões na Vila das Torres, que mantém 12 catadores. “Se eles acharem que não ‘tá bom, podem pular pra outro [barracão]”, completou.

Investidor da miséria

Ele chegou a Curitiba há 30 anos. Por alguns meses, chegou a catar papelão, até perceber que se tivesse um depósito poderia lucrar mais. Vendeu as poucas cabeças de gado que tinha no interior do Paraná e comprou o terreno. Hoje, tem um caminhão Mercedes 608, carro, casa e conseguiu educar as três filhas, que fizeram curso superior.

Os galpões de ambos os entrevistados funciona na clandestinidade. O maior deles mantém um único funcionário assalariado, que trabalha como gerente.

O barracão tem 40 carrinhos, que empresta a catadores, que são obrigados a lhe vender o material.

Negócio dá lucro

Sobre cada carrinheiro, o empresário ganha pelo menos R$ 30, por dia. O barracão também aluga “peças”.

“Ninguém dá nada de graça pros outros. A gente ajuda quem não tem carrinho e não tem onde morar, mas a gente precisa ganhar também. É pouco, mas a gente ganha”, apontou o proprietário do negócio.

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Coleta seletiva de Curiba abastece barracões clandestinos

Mais de 50 barracões privados recebiam, até março de 2014, materiais recolhidos pelo serviço de coleta seletiva de Curitiba – do “Lixo que não é lixo”. O volume era destinado pelos caminhões do município ao Instituto Pró-Cidadania de Curitiba (IPPC), que o repassava aos depósitos particulares. Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), a maioria deles funcionava na clandestinidade – sem registro, alvará e licenças ambientais – e mantinha trabalhadores em condições de extrema vulnerabilidade. Parte dessas empresas se associou e continua a explorar os resíduos.

Ontem, a Gazeta do Povo mostrou que barracões clandestinos, como os denunciados pelo MPT, mantêm catadores em condições análogas à escravidão, em um esquema em que os coletores são obrigados a lhes vender tudo o que catam a preços abaixo dos praticados em mercado, em troca do empréstimo do carrinho e do aluguel de quartos de cortiços que funcionam nos próprios depósitos.

“O município não só está falhando na fiscalização desses barracões, como tem sido conivente. Tudo isso, na prática, acaba incentivando essa situação de trabalho escravo”, aponta a procuradora Margaret Matos de Carvalho. “Houve melhoras significativas nesta gestão, mas alguns problemas graves persistem”, acrescentou.

O cancelamento do convênio com os barracões particulares ocorreu em março de 2014, em atendimento à Política Nacional de Resíduos Sólidos. O artigo 18 da lei estabelece que a coleta seletiva deve ser feita obrigatoriamente com a participação de cooperativas ou associações de catadores.

Manobra

Para voltar a receber os caminhões do “Lixo que não é lixo”, os donos dos barracões constituíram uma associação – a Associação de Catadores e Recicladores de Curitiba e Região Metropolitana (Associar). Hoje, a organização tem capacidade para receber 150 toneladas de materiais advindos da coleta seletiva da prefeitura. O MPT, no entanto, considera que a constituição da entidade foi uma manobra para que os empresários continuassem a explorar os resíduos.

“Não é uma organização reconhecida pelo MPT e pelo Fórum de Cidadania, de que são catadores de fato e de que há regularidade na divisão do resultado do trabalho. Há indícios de que há um ou poucos donos, que exploram o trabalho dos demais”, disse a procuradora.

Em janeiro deste ano, o MPT expediu uma recomendação à prefeitura, para que os resíduos recolhidos pela coleta seletiva fossem encaminhados exclusivamente a associações formadas por catadores e que o município fiscalizasse e impedisse que os materiais chegassem a empresas ou estabelecimentos, em especial aos que não respeitem as leis trabalhistas.

Pouco depois, uma fiscalização feita pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) identificou “situações precárias de trabalho e informalidade” em barracões de integrantes da Associar. Segundo os auditores, havia “falta de estrutura” nos galpões e uso de mão-de-obra de adolescentes.

 

Associação repassa material para barracões irregulares

A Associação de Catadores e Recicladores de Curitiba e Região Metropolitana (Associar) é formada por 17 associados, cada um dos quais tem seu próprio barracão. Apenas um desses galpões foi credenciado pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente, depois de apresentar toda a documentação requisitada. À margem da legalidade, os outros 16 depósitos continuam a receber materiais da coleta seletiva da capital.

A distribuição aos barracões irregulares vem sendo feita pela própria Associar. Assim que a associação recebe os caminhões do “Lixo que não é lixo” no único galpão credenciado, os recicláveis são distribuídos aos outros depósitos de forma clandestina. Uma fiscalização da Secretaria havia detectado o subterfúgio em fevereiro. A própria Associar confirma que continua repartindo o material.

“Eu recebo aqui [no galpão credenciado] e distribuo pra eles [outros associados], porque eles precisam comer”, disse a vice-presidente da associação, Marta Queiroz. “O caminhão descarrega aqui e o pessoal vem pegar. (…) A prefeitura sabe”, completou.

A previsão do contrato do convênio é de que a Associar receba 170 toneladas por mês da coleta seletiva. Para dar destinação ao material, a entidade recebe R$ 35 mil – para cobrir custos operacionais. Segundo a associação, no entanto, o volume foi reduzido a 40 toneladas por mês.

 

“Estamos à beira da fome”, diz vice-presidente de associação

A vice-presidente Associação de Catadores e Recicladores de Curitiba e Região Metropolitana (Associar), Marta Queiroz, reclama que a redução do volume destinado aos barracões da entidade colocou os trabalhadores em condição de vulnerabilidade. Ela aponta que as atuais 40 toneladas mensais repassadas pela coleta seletiva da capital à associação são suficientes para garantir apenas dois dias de trabalho por semana para cada associado.

“Cada um não está fazendo R$ 500 por mês. Estamos à beira da fome”, resumiu. “Tem uma associada que tem 12 filhos e hoje a Kombi dela quebrou. Ela não sabe o que fazer, porque não tem dinheiro nem pra arrumar”, exemplificou.

A Associar alega que a prefeitura reduziu a quantidade de recicláveis destinadas à Associar para ampliar os repasses de materiais ao Instituto Pró Cidadania de Curitiba (IPCC), uma Organização da Sociedade Civil com Interesse Público (Oscip) que recebe 800 toneladas por mês.

Até março de 2014, o IPCC geria a coleta do “Lixo que não é lixo” e repassava parte dos materiais diretamente para os barracões de empresários da reciclagem. Quando a gestão da coleta seletiva saiu do IPCC, vieram as exigências legais. Aí, vieram os problemas para se adequar.

“Antes, mandavam quatro caminhões por dia, por barracão. Hoje, são dois caminhões por dia para a associação [que tem 17 associados]. Como eles [o IPCC] não exigiam nada, o pessoal foi trabalhando aleatoriamente. A gente sempre trabalhou da melhor forma, mas excluíram a gente”, disse Marta.

Na vistoria realizada na associação, além de irregularidades, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apontou que “existe um problema muito mais de ordem social do que puramente de relação de trabalho”, que só poderia ser superado a partir de uma parceria de prefeitura com o Ministério Público. “Aliás, deve ser adotado um procedimento de cobertura social e formalização, pois a fiscalização do trabalho tradicional não dá conta de atender”, observa o documento, assinado pelos auditores Eduardo Reiner e Luana de Geroni.

Exploração

A vice-presidente da Associar nega que os donos de depósitos associados mantenham catadores por meio do empréstimo de carrinhos ou do aluguel de quartos. “Tem até alguns barracões nossos que fazem isso, mas são poucos”, disse. Em geral, ela aponta que os galpões funcionam a partir do trabalho familiar. Em relação às denúncias de exploração da mão-de-obra infantil, Marta alega se tratar de um recurso preventivo. “Meus filhos trabalhavam comigo mesmo, senão o tráfico já tinha levado”, apontou.

 

“Nosso objetivo é privilegiar cooperativas de catadores, não o empresário”, diz secretário

A Secretaria de Meio Ambiente de Curitiba informou que a Associação de Catadores e Recicladores de Curitiba e Região Metropolitana (Associar) está credenciada como uma entidade que congrega trabalhadores da reciclagem, não de empresários. A organização apresentou todos os documentos exigidos, entre os quais declarações que atestavam que os associados são catadores que exercem a profissão há mais de dois anos.

“Se estiverem burlando isso, serão responsabilizados. Mas dá forma como se apresentaram, se apresentaram como cooperativa de catadores”, disse o secretário Renato Eugenio Lima. “Nosso objetivo é trabalhar com cooperativas de catadores, não com o empresário. Se alguém maquiar isso, estará escapando do objetivo, falseando informações”, complementou.

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