8:17Judeus, solitários & fantasmas

por João Pereira Coutinho

Será que o anti-semitismo ainda surpreende alguém?

Eu julgava que não. Lembrando as célebres palavras do satirista Karl Kraus (1874-1936) sobre a Viena do seu tempo (“O anti-semitismo é tão comum que até os judeus o praticam”), deixei de prestar atenção aos delírios anti-semitas que se produzem todos os dias. Caso contrário, seria impossível ler jornais ou assistir a programas de TV. O anti-semitismo é tão comum que toda gente o pratica.

Errei. Parcialmente, mas errei. Afinal, ainda há surpresas. O Reino Unido está em chamas com os escândalos das sucessivas afirmações anti-semitas no Partido Trabalhista.

Tempos atrás, uma deputada afirmou que Israel deveria ser “recolocado” nos Estados Unidos –uma forma simpática de apagar Israel do mapa do Oriente Médio, exatamente como o Irã e seus satélites (o Hamas, o Hizbullah) pretendem fazer pela força das armas. Foi um mini-escândalo.

Agora, veio o escândalo maior: o ex-mayor de Londres, Ken Livingstone, defendeu a camarada e acrescentou alguns “pensamentos” sobre a matéria. Hitler, disse ele, foi um grande apoiante do projeto sionista.

Não vale a pena perder tempo com a sabedoria de Livingstone: no “The Daily Telegraph”, o colunista Charles Moore lembrou que essa fantasia nem sequer é original. Ela foi produzida por Lenni Brennan no livro “Zionism in the Age of Dictators”, um livro que nenhum historiador sério leva a sério.

O que interessa no escândalo em curso é que ele permite ressuscitar todo o histórico anti-semita de uma parte da esquerda britânica –e, já agora, da esquerda europeia.

Sobre o anti-semitismo da direita, há poucas dúvidas e poucas surpresas: o ódio aos judeus sempre fez parte da cartilha mais radical. Mas na história desta vergonha, o mundo esquece por vezes como o anti-semitismo também marchou com a esquerda.

Karl Marx, nas suas tiradas anti-capitalistas, nunca poupou o seu próprio povo –um povo de trambicagens que alimentavam a máquina capitalista e retardavam a revolução.

Stalin, apesar da retórica anti-fascista, também contribuiu com deportações e execuções para dizimar a espécie dentro e fora da União Soviética.

E, no contexto da Guerra Fria, a dicotomia “exploradores” e “explorados” –ou, como Charles Moore prefere, entre “colonialistas” e “colonizados”– assentou como uma luva nas interpretações simplórias sobre o conflito israelo-palestino.

Você pode não saber nada sobre o conflito –origens, guerras, “acordos de paz” etc. Mas uma coisa você sabe: Israel “explora”; os “palestinos” são “explorados”. Fim de discussão.

Foi assim que se chegou ao irracionalismo de hoje: com o álibi de “Israel”, o mais antigo ódio do mundo pode ser exercido de consciência limpa. Até porque “anti-sionismo” é diferente de “anti-semitismo”, certo?

Em teoria, com certeza. Mas, na prática, muitos dos “anti-sionistas” não discutem racionalmente o conflito entre Israel e os palestinos com o mesmo tom com que dissertam sobre conflitos territoriais entre a Índia e o Paquistão; entre a Rússia e os chechenos; entre a China e o Tibete; e etc. etc.

No meio de dezenas de conflitos territoriais, Israel apaixona as plateias porque Israel, bem vistas as coisas, tem judeus lá dentro.

*

A solidão faz mal à saúde, dizem cientistas da Universidade de York. Pessoas com falta de relacionamentos têm risco acrescido de infarto (29%) e de acidente vascular cerebral (32%).

Não contesto os números. Contesto apenas a definição quantitativa de solidão. Será apenas ausência física de outras presenças físicas?

Ou Tchekhov tinha razão quando aconselhava algo como isto: “Se tens medo da solidão, não te cases”? Um boa frase para sublinhar uma evidência: podemos ter companhia permanente e sentir uma solidão permanente.

Longe de ser uma questão física, a solidão é um estado metafísico: é a evidência dolorosa de que a nossa existência não tem qualquer relevância para terceiros. Estarmos vivos, estarmos mortos –uma diferença biológica, não mais.

Existe um conto de Gao Xingjian –Nobel da Literatura em 2000 e um mestre da sugestão– que transmite esse sofrimento de forma magistral. Intitula-se “A Cãibra” e, como o título indica, é a história de um banhista que entra no mar para ser acometido por uma dor forte e paralisante no ventre.

A um quilômetro da costa, ele tenta relaxar o corpo, nadar de volta, não ficar ali perdido no meio do nada. Mas o que dilacera o banhista não é tanto a solidão de se encontrar à deriva; é a angústia crescente de não haver quem repare no seu infortúnio, a começar por uma mocinha de maiô vermelho que brincava junto às ondas.

Será que ela me viu entrar na água?, pergunta o banhista. Será que ela repara na minha aflição?

Com esforço, ele regressa a terra firme. A praia está deserta. O companheiro do seu quarto de hotel também está ausente. E, entre os presentes, joga-se às cartas, conversa-se, vive-se como sempre. Indiferentes.

A solidão talvez seja isto: um afogamento fora da água sem ninguém para nos salvar.

*

Abril foi o mês de dois grandes aniversariantes: Miguel de Cervantes (1547-1616) e William Shakespeare (1564-1616). Mas seria injusto esquecer outros nomes do panteão literário que também perfizeram datas redondas. Evelyn Waugh (1903 – 1966), falecido há meio século, é um deles.

Difícil falar de Waugh com um mínimo de objetividade: continua a ser a maior influência estilística da minha vida e, entre as obras do senhor, são as novelas cômicas –”Decline and Fall”, “Vile Bodies”– que levaria para a famosa ilha deserta, com a qual sonho dia e noite.

Mas nestes 50 anos sobre a morte, decidi reler o mais famoso dos seus romances –”Brideshead Revisited”. Faz sentido: no livro, Charles Ryder revisita o palácio dos Brideshead com 39 anos. Eu, com igual idade, sigo Charles e revisito a obra.

Há coisas que não mudaram desde a primeira leitura –a imponente musicalidade da escrita (parece tão fácil, tão fácil!), a magistral manipulação do tempo narrativo. E o humor de Waugh– nas descrições da relação entre Charles e um pai demente; ou na conversão de Rex Mottram ao catolicismo para casar com Julia de acordo com as regras da Santa Madre Igreja –continua insuperável.

Mas agora, anos volvidos sobre o festim hormonal da adolescência, não é tanto a história de amor impossível entre Charles e Julia que ressoa na consciência; muito menos a opção sacrificial de Julia em abandonar Charles porque Deus é um amante exigente e exclusivo.

(Aliás, aqui entre nós, nunca acreditei verdadeiramente naquele amor: a única paixão de Charles é Sebastian; nos traços físicos de Julia, Charles continua a ver Sebastian.)

Se “Brideshead Revisited” é um livro religioso (e é), talvez seja pelo purgatório em que vivem todos os personagens –”órfãos da tempestade”, como diz Julia, figuras quase fantasmagóricas que habitam um limbo onde não existe pertença a nenhum lugar.

E, nesse limbo, Sebastian é a mais trágica figura de todas. O seu alcoolismo é apenas a expressão superficial de um desenraizamento mas profundo.

Quando o encontramos em Oxford – um esteta na companhia do seu boneco de peluche –não há ali alegria alguma. Apenas a inabilidade de habitar um mundo adulto, deixando para trás o lugar arcádico da infância.

Em rigor, Sebastian não pertence a Oxford; e também não pertence a Brideshead, que ele nunca reconhece como “a minha casa” –mas, antes, como “a casa onde a minha família vive”.

E quando a sua auto-destruição é amparada por uma ordem religiosa no norte de África, Sebastian continua a ser essa alma errante entre a “cidade de Deus” e a “cidade dos homens”, sem nunca pertencer a nenhuma delas.

O poeta Dante que me perdoe: o purgatório de Evelyn Waugh fala mais aos meus ouvidos modernos do que a beleza, incontestável, do “segundo reino” do florentino.

Publicado na Folha de S.Paulo

 

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