19:07ZÉ DA SILVA

Tinha um campo florido na alma, mas de repente, sem que chamasse, entrava um bicho alucinado, fungando, babando, cuspindo, xingando com urros – e fazia desaparecer o que tentava cultivar há muito tempo. Depois, ficava sentindo só o animal ali dentro, que procurava as partes mais sensíveis para estropiar, fazer doer mais que ponta de punhal enterrada no olho. Se contorcia por dentro tentando achar algo que fizesse aquilo desaparecer, mas aquilo acontecia porque ele atingia quem estava perto, não importando quem, como se fosse possível passar para longe aquilo – e o que fazia era apenas despertar bichos diferentes em quem sofria o ataque animal. Às vezes, para tentar aliviar a culpa, imaginava que o seu bicho, o que criara desde que nasceu, tinha sido provocado pelo que vinha de fora pra dentro. Depois se convencia que, de fato, não era nada disso. Aí a estocada dilacerante que o fazia ver alguma coisa pontiaguda fazendo o caminho inverso do ar, rasgando a garganta, dificultando a respiração, vertendo sangue, quebrando ossos, mutilando nervos e músculos. Olhava-se no espelho. Manchas, necroses, pelos desalinhados. Então, criava coragem, e fitava as próprias pupilas e um mar em volta. Coqueiros. Uma brisa. Uma música. Uma criança sorrindo. Pés descalços na areia fina. Ele! Os filhos dele! Voltou o campo florido. E a esperança de um dia matar aquele bicho para sempre.

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