7:20‘Como em 1808, sobram mais vilões que mocinhos’, compara Laurentino Gomes

Do jornal O Globo

Olhando para o passado, o jornalista e historiador Laurentino Gomes — autor da série de livros “1808”, “1822” e “1889”, sucesso de vendas — vê com bons olhos o Brasil de 2016. “É a primeira vez que todos os brasileiros são chamados a participar da construção do futuro. E democracia é difícil”, pondera.

Em entrevista na Biblioteca Parque Estadual, no Centro do Rio, onde realizou uma palestra quinta-feira sobre o projeto “Era uma vez… Brasil”, Laurentino faz um paralelo entre a corrupção de Dom João VI, no século 19, com a atual e diz que, apesar de ver crime de responsabilidade na administração de Dilma Rousseff, o governo da petista entrará para a história como um “período de combate às roubalheiras”.

O senhor acredita que 2016 se assemelha a algum período histórico?

Sim. Acho que, daqui a 200 anos, quando um jornalista e historiador quiser escrever um livro sobre 2016, provavelmente vai chegar à conclusão de que a gente vive hoje um período tão transformador quanto foi a vinda da corte portuguesa em 1808 ou a Independência do Brasil, em 1822. Porque o país está passando por uma experiência inédita na sua história, que é o exercício continuado da democracia durante mais de três décadas. Se você olhar o Brasil pela perspectiva do noticiário do dia a dia, dá a impressão de que o país acabou. Mas, se olhar de uma forma mais distanciada, vai ver que a gente está vivendo uma experiência maravilhosa. É a primeira vez que todos os brasileiros são chamados a participar da construção do futuro. E democracia é difícil.

Esse é o segundo processo de impeachment no Brasil em 25 anos. Nós não aprendemos com a nossa história?

Somos um povo que não tem muita paciência para construir soluções de longo prazo. Temos um caráter muito forte que é o salvacionismo. A gente quer soluções milagrosas. Não tenho nada contra o processo de impeachment, desde que caracterizado e julgado. Mas é, por natureza, uma medida drástica. Não é normal numa democracia madura ter dois processos de impeachment em 25 anos.

O que o senhor acha do processo vivido pela presidente?

Vivemos uma experiência muito positiva que são as instituições civis exercendo seu poder de forma plena, o que não aconteceu antes. Então, existem quatro grandes instâncias atuando como nunca fizeram na República: a imprensa, o Ministério Público, a Polícia Federal e as instâncias da Justiça. Não há nada de golpe no impeachment desde que haja tipificação de crime.

E o senhor acha que houve o crime de responsabilidade?

Acho que sim. Não cumprir o que foi combinado no orçamento federal é uma coisa gravíssima. É um crime de responsabilidade. É você trair um consenso que foi firmado num ambiente democrático.

A corrupção no país tem explicação histórica?

Sim. Há um discurso cínico no debate político de hoje que é usar esse histórico como desculpa para roubalheira. Todo mundo roubou até hoje, porque eu não posso roubar? Isso é inaceitável. Agora, que a corrupção é histórica e endêmica é verdade. Quando a corte chegou ao Brasil, o toma-lá-dá-cá e a promiscuidade com a elite brasileira — composta pelos usineiros, senhores de engenho, mineradores de ouro e diamante, fazendeiros de café e traficantes de escravos — eram uma coisa escandalosa. Para você ter uma ideia, no dia em que chegou ao Rio de Janeiro, Dom João ganhou de presente de um grande traficante de escravos, chamado Elias Antônio Lopes, a melhor casa da cidade — o palácio da Quinta da Boa Vista. Por que essa pessoa deu de presente ao rei? Um palácio em troca de quê? Título de nobreza e privilégios em negócios públicos.

Os livros de história daqui a 50 anos vão contar 2016 como um ano marcado por um golpe ou pela corrupção?

O discurso do golpe é muito da fervura da política atual. É um discurso político que tem ressonância forte na opinião pública. Mas, de um ponto de vista histórico, a longo prazo, não. O que vai passar para a história é que, pela primeira vez, topamos o desafio de passar a limpo esse passivo histórico que é a corrupção. Inclusive o governo Dilma Rousseff vai ser visto mais por esse aspecto do que propriamente por eventuais problemas de administração do orçamento. Acho que o motivo do impeachment serão as pedaladas fiscais, mas, do ponto de vista histórico, o que vai ficar na história é um país que, exercendo democraticamente as suas liberdades, foi fundo na investigação e na punição dos casos de corrupção. Porque esse é um saldo que permanece. Tenho certeza que na próxima campanha presidencial o empreiteiro vai pensar dez vezes antes de fazer um caixinha por fora para financiar a campanha. Ele sabe o que aconteceu agora e não vai correr esse risco.

O subtítulo de “1808” é “Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil”. Como seria o de um livro sobre 2016?

(Risos) Demora fazer um subtítulo desse. Mas posso dizer quais são os personagens principais: O juiz Moro, claro. Por mais controversa, a atuação dele é marcante. A presidente da República, a primeira mulher no posto, eleita por um ex-presidente que vem retirante nordestino com baixíssima escolaridade e formação sindical: uma coisa incrível. E tem outro: o presidente do Congresso (Eduardo Cunha) que está conduzindo o processo de impeachment enquanto é réu no Supremo Tribunal Federal. Então, acho que, no Brasil, sobram mais vilões do que mocinhos. Parecido com 1808.

O concurso “Era uma vez… Brasil” vai levar cem alunos de escolas públicas para um intercâmbio para Portugal (informações em www.eraumavezbrasil.com.br). O que eles vão poder ensinar na volta?

Os estudantes vão fazer uma reflexão sobre o Brasil de hoje. O que o nosso país na atualidade tem a ver com a criação do Brasil há 200 anos.

 

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