7:25O homem que faz a coisa certa

por Ivan Schmidt 

A Editora Objetiva comprada pelo grupo capitaneado por Roberto Schwarcz, planejador de voo da midiática Companhia das Letras, acaba de colocar nas livrarias um livro póstumo do anglo-americano Tony Judt (1948-2010), cujos ensaios foram selecionados por Jenifer Homans, também autora da introdução.

Ninguém melhor que ela, historiadora respeitada pela academia, para executar a tarefa porquanto foi casada com Tony Judt e mãe de seus dois filhos, Daniel e Nicholas. Nascido de família judaica de classe média radicada na Inglaterra, depois de brilhante carreira de historiador, professor, pesquisador e crítico das marchas e contramarchas da política internacional, Judt se transferiu em definitivo para os Estados Unidos onde adquiriu a cidadania.

O livro em questão é Quando os fatos mudam, ensaios 1995-2010, com a tradução assinada por Claudio Figueiredo, na minha avaliação uma das decisões editoriais mais importantes da temporada de 2016, biscoito fino para os apreciadores da boa leitura em história e filosofia política.

Segundo a organizadora “este é um livro a respeito da nossa era”, tendo sido o título sugerido pelo filho Daniel, de 19 anos, calcado numa citação provavelmente apócrifa de Keynes, na verdade, um dos mantras preferidos por Tony: “Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião – e o senhor o que faz?”.

Explicando a forma com que o livro foi organizado, Jenifer escreveu que dispôs os “ensaios em ordem cronológica, assim como temática, porque cronologia era uma das maiores obsessões de Tony. Ele era, afinal de contas, um historiador, e nutria pouca paciência em relação a modas pós-modernistas de fragmentação textual ou rupturas narrativas, em especial no que diz respeito à escrita da história. Não estava realmente interessado na ideia de que não existe uma única verdade (não se tratava de algo óbvio?) ou na desconstrução deste ou daquele texto. O trabalho realmente importante, ele acreditava, não consistia em dizer o que não era, mas sim o que era – contar uma história convincente e escrita com clareza a partir dos indícios disponíveis, e fazer isso sempre atento ao que era certo e justo”.

Aluno do King’s College (Cambridge) e da Escola Normal Superior de Paris, Judt lecionou em Cambridge, Oxford e Berkeley, e ao lado da carreira no magistério superior escreveu ou organizou 14 livros, além de publicar com frequência seus ensaios em periódicos importantes como o The New York Rewiew of Books, Times Literary Supplement, The New Republic e The New York Times, além de outros na Europa e Estados Unidos.

Não é preciso ser nenhuma sumidade para extrair do pensamento de Judt subsídios que ajudam o observador da cena brasileira a compreender o exato significado (ou o mais próximo disso), da mudança acelerada dos fatos que vão compondo a colcha de retalhos da nossa política.

Na política brasileira, não há o que duvidar, os fatos são extremamente mutantes.  Aliás, é por isso que ainda não se arquivou a definição da velha raposa mineira de que política é como a nuvem, que você olha e vê de um jeito, e quando olha de novo já se mostra diferente. Temos aí uma autêntica contribuição tupiniquim para um anedotário, que à semelhança da frase atribuída a John Maynard Keynes também pode ser apócrifa, mas conta com a unção abençoada da sabedoria popular.

Os fatos mudaram no pequeno intervalo (para muitos uma eternidade) de 14 anos incompletos, que é o tempo em que o PT governa o país por intermédio de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Os números estonteantes que expressavam o apoio da população aos dois mandatos de Lula, que saiu do Palácio do Planalto com 80% de aprovação, a rigor começaram a ruir já no primeiro governo Dilma para descambar serra abaixo, em ritmo frenético, nos primeiros 15 meses do mandato atual. O apoio irrestrito se transmutou num abrir e fechar de olhos em frustração e lamento.

A prova cabal está na última pesquisa feita pelo Datafolha no auge da ebulição ocasionada pelo conteúdo da delação premiada do senador Delcídio Amaral, da condução coercitiva de Lula para depor na Polícia Federal, da suspensão do embargo às conversas telefônicas de Lula com a presidente Dilma e a nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil, que está com posse suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.

Esse conjunto de fatos teve efeito devastador sobre o Palácio do Planalto, que já estremecia nas bases, levando os operadores políticos mais graduados a antever com um realismo inexorável os sinais do impeachment da presidente.

Outro dado elementar que explica o comportamento da maioria do eleitorado foi a manifestação das multidões nas ruas e praças no último dia 13 de março, quando milhões de brasileiros saíram de casa para pedir o afastamento de Dilma e a prisão de Lula.

Alguns chegaram a ver uma coincidência de péssimo agouro na data da manifestação, lembrando o fatídico comício do dia 13 de março de 1964, que os apoiadores de João Goulart marcaram para a Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e que acabou açulando a arregimentação da caserna (com o apoio entusiasta da sociedade civil) para a derrubada de Jango.

O apoio maciço obtido pela manutenção da política econômica de FHC e o reforço inegável dos programas sociais também iniciados no governo anterior, não obstante a hiperbólica declaração de que 50 milhões de brasileiros deixaram a pobreza para ingressar no paraíso da classe média (basófia digna de Pedro Malasartes), hoje está transformado num veemente protesto subscrito pela maioria absoluta da mesma população.

Os percentuais de rejeição e o ínfimo apoio registrados pelo Datafolha e outros institutos mostram a real dimensão do buraco cavado pelos próprios governantes máximos do país desde 2002, culminando com a reeleição de Dilma em 2014, quando a enxurrada de recursos financeiros oriundos do esgoto dos desvios e propinas construído com o respaldo (ou indução?) de megaempreiteiras – dinheiro subtraído da Petrobras – adubou o caixa da campanha, ademais da inesgotável coleção de mentiras que assoalhou a conquista do segundo mandato, atualmente contestado pela massa.

Keynes tinha razão ao dizer que quando os fatos mudavam, ele também mudava de ideia e, esta pode vir a ser uma das razões fundamentais, senão a principal, a dar suporte ao posicionamento do eleitor consciente e cansado de ser feito de trouxa.

As coisas mudaram e para pior e, somente os que se deixam guiar com a passividade dos bovinos pela vulgata de incompetentes treinados não conseguem separar a sombra da luminosidade.

Um dos ensaios de Tony Judt – Sobre A peste – tem por base o romance homônimo do argelino Albert Camus, publicado em 1947 quando o autor tinha 33 anos e logo identificado como uma alegoria à ocupação da França pelos nazistas. Segundo o historiador “a insistência de Camus em situar a responsabilidade moral individual no centro mesmo de todas as escolhas públicas é um desafio direto aos cômodos hábitos da nossa era”.

Não sejamos drásticos a ponto de afirmar que a política brasileira está contaminada por um tipo de peste – na cidade argelina de Oran, onde o romance transcorre, o surto era de peste bubônica e, na ficção elaborada pelo gênio de Camus, o jovem médico Rieux assume a conotação de um verdadeiro heroi por sua luta incansável para deter as consequências destruidoras da doença.

É lógico que as coisas são diferentes, embora guardem alguma similitude entre um aspecto e outro, mesmo levando em conta estarmos diante duma construção alegórica que, apesar dos limites impostos pela imaginação teima em se intrometer na realidade.

Ao analisar o romance de Camus, Judt teve sua atenção chamada para a definição de heroísmo concebida pelo escritor argelino. Trata-se de algo simples, sem afetação, de natureza comum, mas no que nos diz respeito de profundo impacto na mente de pessoas preocupadas com o futuro: “Sua definição de heroísmo – pessoas comuns fazendo coisas extraordinárias movidas pela simples noção de decência – soa mais verdadeira do que admitíamos no passado”.

Um jovem e intimorato juiz federal, o doutor Sergio Moro, à frente de uma equipe formada por magistrados, procuradores e policiais federais, está desmontando peça por peça o imenso emaranhado da corrupção com dinheiro público que envergonha o Brasil diante de seus parceiros internacionais.

Homem comum, guiado pela decência e pelo senso da responsabilidade moral da cidadania, cujo desassombro o transformou numa das personalidades mais admiradas de sua geração, ao mesmo tempo em que se coloca sob a mira insana e enraivecida dos que são privados dos anéis e dos dedos, o juiz Sergio Moro repete a saga do doutor Rieux, o homem que “faz a coisa certa apenas porque enxerga claramente o que precisa ser feito”.

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