11:36Caminhe

por Yuri Vasconcelos Silva

Somente quem vai pela rua, caminhando como se fosse pelos corredores da própria casa, conhece a verdadeira cidade. Para se aproximar de cada recanto ou ruga, é preciso um compasso mais lento das pernas. Os pés devem sentir as lajotinhas portuguesas, a pele sentir a intermitência do calor e frio num dia. Sentir o cheiro de jasmim que vem dos jardins das casas. Ver o contraste entre os velhos prédios e o magnífico azul que este lugar tem em seu céu. Não há contato real quando dentro de um carro, separado por vidros e velocidade acima dos sete metros por segundo. Uma cidade é como um elaborado prato, cheio de etapas e camadas distintas a descobrir. Comer com pressa é um desperdício para o paladar.

Ao passear pelo centro de Curitiba, perceberá uma série de dimensões que dão caráter àquele lugar. Além do ambiente construído, feito por coisas sólidas como o piso, os edifícios e domos roxos, existe ainda uma série de percepções sensoriais que extrapolam a visão. Odores, sensações táteis e até mesmo o paladar, quando o lugar está associado à degustação em algum bar ou restaurante. A memória e a imaginação são componentes de um sexto sentido que, através da mente, reconstroem o lugar no passado ou vislumbra o que será no futuro.

No entanto, há uma dimensão que muitas vezes sequer é percebida. O universo das coisas vivas. Os lugares sem seus habitantes são como um cemitério no meio do nada. As pessoas e animais que escolheram a urbe como o cenário cotidiano de suas vidas dão igualmente vida a todos os cantos. Cada lugar tem uma natureza própria marcado por seus nativos. Quando de frente para a Cândido de Abreu, a pressa de engravatados e mulheres bem maquiadas pululam pela avenida. Já no Bom Retiro, os passos são mais lentos, os olhares contemplativos e os pássaros mais audíveis. Os seres vivos – pessoas, cachorros, gatos, ratazanas, capivaras e tudo mais – imprimem identidade não só à totalidade urbana, mas também personalizam cada zona de Curitiba.

Entre tantos, as pessoas que vivem na rua têm se destacado por uma aparente incongruência. Há quem considere que estes seres perturbam a paisagem urbana, ao transformar marquises e edifícios abandonados em seus abrigos. Portanto, deveriam ser extirpados do cenário. As pessoas que vivem na rua provocam incômodo de algumas sensações, acrescentando um ruído indesejado aos lugares que as pessoas têm conexões. Trata-se, de fato, de uma projeção imperfeita de uma cidade limpa e organizada. Isso não existe em lugar algum. Qualquer metrópole tem como característica básica o caos. Uma metrópole vive do caos. Mas também é isso que dá riqueza aos lugares.

A solução não é simplista, como muitos desejam. Não se pode recolher todos em abrigos municipais, com camas e sabonetes à disposição para que, em seguida, cada um receba um trabalho e tenha uma vida feliz. Cada ser sob um papelão tem uma história que sequer podemos imaginar. Estas histórias precisam ser abordadas de diferentes formas, de maneira hábil, para de fato tentarmos ajudá-las. Ainda que este esforço seja colocado em prática, existem aqueles que puramente escolheram esta forma de vida.

Para entender as razões pelas quais as pessoas vivem na rua, é necessário se aproximar delas a tal ponto de surgir total empatia ou, em outros termos, compaixão. É bastante árduo pedir para alguém, que só anda de carro com vidros fechados e medo de todos, que verdadeiramente entendam uma pessoa que vive na rua. Há uma forte tendência de achar que o que seria uma boa solução para nós mesmos, é aplicável aos outros.

Talvez se estivéssemos mais próximos deles, sem medo, como vizinhos que todos somos. Talvez caminhando mais pela cidade, a passos mais lentos, com um olhar mais atento e contemplativo, surgirá o início de um novo olhar para os que habitam nossas ruas. É possível que o problema não esteja ali, sob as marquises, mas simplesmente aqui, em uma mente fechada e rápida demais, como os carros pelas ruas.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

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Uma ideia sobre “Caminhe

  1. Gerson Guelmann zs

    Primor de texto, eivado de compaixão e humanismo. Uma porrada nos higienistas!

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