12:22Manoel Carlos Karam: a imaginação e o humor contra o realismo

por Reginaldo Pujol

Livro bom o resenhista já sabe: não vai caber na resenha. O volume de contos “Um milhão de velas apagadas” (Kafka Edições, R$ 35), obra póstuma de Manoel Carlos Karam (lançado em simultâneo a “Godot é uma árvore”, reunião de fragmentos) não caberá aqui.

Porque há um trecho do conto “Viés” — “apalpei de tudo o que é lado […] era a primeira vez que eu recebia um pacote reto num lado, redondo no outro, enrugado e áspero no outro, de altos e baixos no outro, e tinha um lado que não tinha” — que diz muito dos contos do livro e da obra de Karam: imprevisível pacote com lados retos, redondos, enrugados, altos e baixos, e um que não tem. Se você não está acostumado com o autor, saiba: não há formas facilmente reconhecíveis na escrita de Karam.

Na obra “karaniana”, as formas estão em diálogo, contraste, espelhamento com uma série de autores (literários, cinematográficos, teatrais ou musicais). As referências são muitas, na estrutura, nos temas ou no jogo de citação tão típico de Karam: Shakespeare, Orson Welles, Villa-Lobos, Miles Davis, Perec, Pynchon, Beckett. Mas é um pacote estranho: não há contos tradicionais (final de efeito, duas histórias, ressonância, nada disso). Se muitas vezes citações ou referências podem ser chaves que abrem o entendimento de um conto, não será essa a operação aqui. A sensação é que muitas referências não estão lá para apontar caminho, mas para criar labirinto. Nelson de Oliveira, “karanista” juramentado e reconhecido, já disse: “Karam sempre insistiu no enredo labiríntico, nos protagonistas espiralados, na topografia onírica”.

Além desses recursos, sobressaem aqui o jogo de citações que desviam e estranham a leitura e um constante efeito de déjà lu: frases ressurgem de um conto para outro, personagens reaparecem, temas são retrabalhados. Como num labirinto, não sabemos o que é caminho novo e o que já foi percorrido. Como diz o conto que fecha o livro, “bifurcação é o que não falta, uma bifurcação coladinha na outra, uma maravilha”.

OUTRA LITERATURA BRASILEIRA

Bifurcações e descaminhos de Karam que lembram a proposição de Milan Kundera em “A arte do romance” sobre uma linhagem de romances como “Tristram Shandy“ e “Jacques, o fatalista”: “romances concebidos como um jogo grandioso […] O romance ulterior fez-se amarrar pelo imperativo da verossimilhança, pelo cenário realista […] Abandonou as possibilidades contidas nessas duas obras-primas, que estavam em condições de fundar uma outra evolução do romance […] (sim, também se pode imaginar uma outra história do romance europeu)”, diz Kundera, que não leu Karam. Mas Karam (e Campos de Carvalho, por exemplo) permitem imaginar uma outra história da narrativa brasileira.

História onde, como em “Um milhão de velas apagadas”, além das bifurcações, a imaginação corre solta e combate o pacto realista: “Às minhas costas, pelos meus lados, na minha frente, em mim, algo em algum lugar exigia que eu imaginasse algo”, diz um dos narradores refletindo o que se passa em todo o livro: perseguições imaginárias (“Grande Hotel Rosebud”), repetição da estrutura “É mentira que” (“Serviço de empurrar pedra”), ou uma cena-resumo da relação com o real: “umas meninas e uns meninos construíam um castelo de areia sem ameaça da maré, a cena foi exatamente esta, menos umas meninas e uns meninos construindo um castelo de areia sem ameaça da maré”.

Mas tudo isso não seria Karam se o indecifrável pacote não viesse embrulhado pelo humor do escritor, como na “religião politeísta que proibia a natação” ou em momentos como esse: “apanhei um palito, prendi o palito na orelha direita, me lembrei da palestra de um indiano, ele dizia que pequenos gestos são importantes para a vida da gente, quando vi o paliteiro […] pensei que estava ali a chance de um pequeno gesto importante para minha vida”.

E muito mais poderia ser dito, muito mais. Mas eu avisei: não caberá nesta resenha.

*Publicado no jornal O Globo 

*Reginaldo Pujol Filho é escritor, autor de “Só faltou o título”, entre outros livros

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