6:55A república das letras

Por Ivan Schmidt 

O mínimo que se pode dizer é que foi exuberante do ponto de vista da cultura o período demarcado pelas três décadas dos anos 30, 40 e 50 do século passado, especialmente em Paris, a cidade luz, com o apogeu da produção filosófica e ficcionista de luminares do porte de André Gide, André Malraux, André Breton, Paul Éluard, Louis Aragon, Paul Nizan, Merleau-Ponty, Drieu La Rochelle, Saint-Exupéry, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, entre tantos outros.

Havia também intelectuais russos, alemães e europeus do Leste expatriados ou simplesmente em busca de um lugar em meio à fulgurante inteligência que vicejava em Paris (alguns deles se confessaram atraídos pela boêmia), dentre os quais brilharam Ilyia Ehrenbourg, Isaac Babel, Tristan Tzara, Jorge Kojéve e Arthur Koestler. Na pintura o mais badalado era o espanhol Pablo Picasso, ao passo que no teatro as figuras de proa eram Jean Marais e Jean-Louis Barrault, atores que faziam estourar as bilheterias.

A Europa ainda não havia se curado das feridas da Primeira Guerra e outra se avizinhava, de modo que o debate intelectual se nutria em grande medida dos ingredientes do comunismo stalinista, socialismo, fascismo e antissemitismo.

Os defensores de cada partido se agrupavam em torno de seus próprios jornais ou revistas e se encontravam todos os dias para conversar mesmo nos períodos mais agudos da guerra (os que não foram convocados), quando os cardápios se limitavam a oferecer ovos, rabanetes, espinafres e sucedâneos de café, especialmente no Flore, Dôme, Deaux Magots, Closserie Lilas e a afamada Brasserie Lipp, curiosamente todos localizados na Rive Gauche (Saint-Germain-des-Prés), espécie de território livre para o pensamento que se tornaria mundialmente conhecido exatamente pela preferência da intelectualidade.

Esse foi o palco perfeito para a gestação da maioria dos livros dos grandes escritores, assim como artigos e ensaios publicados nos jornais, as peças teatrais e intermináveis discussões político-filosóficas – lembremos que a filosofia dominante na época era o existencialismo inspirado em Kierkgaard e Heidegger. O volume em alemão de Ser e tempo, obra fundamental do então reitor da Universidade de Fraiburgo, tirante a estranheza de sua submissão ao nazismo de Hitler, era o mais requisitado pelos estudantes na biblioteca da Escola Normal Superior, de onde saiam nove entre dez figurantes que dominavam o cenário intelectual francês.

No excelente A Rive Gauche (José Olympio Editora, RJ, 2009), o escritor norte-americano Herbert R. Lottman, autor da considerada biografia definitiva de Albert Camus e outros livros importantes, comenta que “era frequente verem-se os ativistas de grupos e grupelhos rivais nos mesmos lugares públicos – o Coupole, em Montparnasse, o Flore, em Saint-German-des-Prés – uma vez que eram editados pelas mesmas casas, como Grasset e Gallimard. As duas colônias coexistiam. Dado o comportamento social daquele tempo, era possível partilhar a vida de estudantes do Quartier Latin, os solenes salões da Escola Normal Superior e os corredores e cubículos da Nouvelle Revue Française sem realmente partilhar as mesmas ideias básicas”.

Era a época dos semanários de opinião de grande formato, escreveu Lottman, “impressos em papel jornal, com enormes manchetes; a maioria preferia os desenhos – caricaturas, desenhos políticos humorísticos – às fotografias, ainda que estas não tenham sido excluídas. Os mais lidos eram conservadores. Nenhum semanário de orientação esquerdista tinha o impacto do Gringoire, que levava o subtítulo de “O grande semanário parisiense de política e literatura”, cuja tiragem chegou a 650 mil exemplares nos anos da Frente Popular”.

Circulava também o Candide de Arthéme Fayard, que vendia 300 mil exemplares por edição, além do satírico Le Canard Enchainé, com uma média de 175 mil exemplares semanais. A Gallimard, que empresava a edição da NFR lançou também um semanário literário ilustrado – Marianne – dirigido por Emanuel Berl, tendo a disposição “a elite literária da NRF para encher suas páginas”.  Apesar dessa grande vantagem nunca chegou a vender mais de 120 mil exemplares por semana.

Figura polêmica da época, para quem “não existe categoria na qual encaixar” segundo Lottman, foi o médico e romancista Louis-Ferdinand Céline, que sequer pertencia a qualquer um dos muitos grupos da Rive Gauche. Um “escritor desengajado”, que apesar de formado em medicina e exercer também a profissão “tinha pouco interesse pela humanidade”.

Lottman diz que “há muita confusão em torno de Céline, pois ao tentarem absolvê-lo das acusações de ter servido aos nazistas, seus admiradores não se contentavam em citar sua contribuição à história da literatura; gostavam de se referir a ele como apolítico, até não racista. Um equívoco comum, por exemplo, é julgar que Céline escreveu os extraordinários romances pelos quais é conhecido durante uma fase de inocência, no começo, antes de tornar-se um escritor maldito”.

Em dezembro de 1937, prossegue Lottman, Céline “lançou Bagatelles pour um massacre, o mais violento texto publicado na década antes da guerra por um escritor sério e um editor sério (Denoël). Tratava-se de um formidável incentivo aos fascistas da nova geração. Lucien Rebatet e seus camaradas do Je Suis Partout deliciaram-se com o ‘prodigioso reforço’ – o engajamento ao seu lado de ‘um escritor que permaneceu na extrema esquerda, ainda que tenha anunciado desapontamento com o comunismo; um homem do povo, um naturalista por excelência, um ateu em que não se pode suspeitar opiniões reacionárias’”.

O antissemitismo que fazia escola na ocasião teve em Céline um dos mais desinibidos propagandistas. O livro L’Écolle des cadavres, foi anunciado num panfleto que citava algumas de suas passagens mais polêmicas: “Para nosso azar, os judeus estão aqui (…) São mil vezes mais perniciosos que todos os alemães do mundo”.

É nesse clima efervescente que desponta o fenômeno intelectual chamado Jean-Paul Sartre, egresso da Escola Normal Superior como tantos outros, decerto um dos intelectuais europeus mais lidos, discutidos, invejados e vilipendiados do século 20. Um de seus admiradores acérrimos, o filósofo e romancista Bernard-Henri Lévy, num livro que para muitos críticos não passou de laudatória e desavergonhada bajulação (BHL foi secretário de Sartre por alguns anos), colocou a questão: “Como se explica que seja Sartre, e não outro, que toma o archote gidiano e, a partir daí, domina a época?”.

A resposta que desborda por centenas de páginas está em O século de Sartre (Nova Fronteira, RJ, 2001), em que BHL argumenta: “Há esse talento, por certo, que o faz abraçar os gêneros disponíveis. Esse negócio de estilo e de postura. A força da literatura corrompida pela filosofia, e a da filosofia rompida pela literatura. O teatro concebido como uma tribuna em que sua filosofia se encena, o jornalismo como um apêndice do seu teatro. Há a maneira, em suma, de multiplicar as vozes e as modalidades de enunciação, os regimes e velocidades de intervenção – e, também, de propor essa teoria do engajamento que, provavelmente, seus contemporâneos esperavam”.

Mas, o argumento que parece definitivo, ou o que melhor explica a indubitável predominância intelectual de Jean-Paul Sartre na segunda metade do século passado, segundo BHL foi “sua maneira de se colocar na confluência, não somente dos gêneros, mas das ideias do seu tempo – sua maneira de totalizar, não mais somente os estilos disponíveis, mas o conteúdo, as intensidades visíveis e invisíveis, o pensamento e o impensado dos discursos, as figuras do imaginário que aí estão investidas, seus sentimentos e pressentimentos, suas inquietações, seus sonhos, sua energia, seus ensinamentos secretos, seus equívocos, enfim, sua maneira de estar no cerne do entendimento dessa época, para a qual ele pretende que o escritor escreva”.

BHL acaba por dizer que Sartre “não tomou o lugar” de Gide, senão que “fabricou o seu trono” e “esculpiu seu próprio cetro”.

Canonizado em vida, a licença é de Bernard-Henri Lévy, todas as honrarias de que Sartre foi alvo foram recebidas com indiferença glacial, incluindo o Nobel de Literatura simplesmente recusado. “E Sartre, Sar-tre, o rei de Saint-Germain-des-Prés, figurinha fácil da república das letras, superstar da filosofia! Que bicho o mordeu? Pode-se levar a sério, quando se passou a vida aos pés da mídia, vir agora bancar, como Gracq ou Michaux, o silencioso? Quanta arrogância, diz um! Que sacana, diz outro!”.

O mesmo BHL que escreveu as frases acima, maravilhado diante do gigantismo dessa personalidade que brotou duma família burguesa da Alsácia se arriscaria a especular: “Talvez houvesse alguma monstruosidade em ser Sartre – esse pensador esquisito, singular, exorbitando da regra comum, meio demente, cujos muitos enunciados, muitos deles vindos de outra boca, teriam produzido efeitos desastrosos”. Mas lhe reconhece o mérito de ter sido “o mais radical dos pensadores da liberdade – no mínimo, de ter produzido o pensamento contemporâneo que levou mais longe, até a vertigem, quase ao absurdo, a hipótese da liberdade”.

Houve no Brasil, guardadas as distâncias é bom que se diga, um período igualmente fértil em que políticos, profissionais liberais, escritores, jornalistas e artistas de vários naipes, deram uma contribuição de altíssimo nível ao debate de idéias, sobretudo a partir do golpe de 1964, quando a voz serena (às vezes nem tanto) de referências morais como Barbosa Lima Sobrinho, Tristão de Athayde, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilella, Hélio Pelegrino e outros, forneceram o diapasão para marcar o ritmo do embate libertário que fez regurgitar em nosso país a chamada imprensa nanica, com destaque para os semanários Pasquim, Opinião, Movimento, EX e (a meu juízo) o mais importante de todos – Jornal da Semana – editado por Arthur José Poerner.

Todos eles, em maior ou menor grau, sufocados pelas enormes dificuldades financeiras para a manutenção do empreendimento, quando não exterminados pela censura, proibição e contínuas apreensões de edições inteiras.

Tanto na grande imprensa quanto nos jornais nanicos, assim como em outros meios de expressão do pensamento, é de inteira justiça mencionar as contribuições de Cláudio Abramo, Audálio Dantas, Zuenir Ventura, Otto Lara Rezende, Antonio Callado, Samuel Wainer, Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Stanislaw Ponte Preta, Luiz Carlos Maciel, Paulo Francis, Tarso de Castro, Fausto Wolff, Plínio Marcos, Augusto Boal, Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Camargo Guarnieri, Leilah Assunção, Cacilda Becker e Rute Escobar, enfim, uns poucos nomes de uma lista interminável.

Em Nossa Senhora da Luz dos Pinhais os condimentos do caldo cultural da época foram da responsabilidade dos mestres João Manuel Simões, Wilson Martins, Dalton Trevisan, Rio Apa, Walmor Marcelino, Jamil Snege, Paulo Leminski, Manuel Carlos Karam, Paulo Vitola, Milton Ivan Heller, Luiz Geraldo Mazza, Silvio Back e, mais recentemente, dos premiados romancistas Cristóvão Tezza, Domingos Pelegrini e Miguel Sanches Neto.

Certamente o leitor terá outros nomes de sua preferência a acrescentar a listas como essa, que raramente estão livres de cometer injustiças.

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