10:20Conversa com o Garcez

por Yuri Vasconcelos Silva

Achavam que ele era louco porque todo dia sentava-se mais ou menos no mesmo horário, recostado naquele velho relógio de algarismos romanos, onde o número quatro era representado estranhamente como uma sequência de “Is”. Assim: IIII.

Fitava por alguns minutos o Edifício Garcez, aquele prédio com postura de quem merece respeito dos vizinhos, apontando sua esquina para a praça da feirinha e dos prostitutos. Suas fachadas exibiam um degradê de luz que, a partir do calçadão, eram amareladas pela iluminação em globos que existiam por ali. Em direção ao céu frio, suas paredes eram azuladas e escondidas sob névoa de cristais de gelo suspenso. O senhor parecia admirar a mudança de tons sobre o respeitoso prédio enquanto o dia se convertia em noite.

Com o céu noturno já posto, ele levantava-se, e batia seus farrapos em calça na altura da bunda – para se livrar da sujeira do chão. Aproximava-se da parede e a tocava. Diziam que ele estava acordando o Garcez. Feito isto, ele então conversava com seu amigo. Na última vez que foi visto falando e gesticulando sozinho diante do prédio, seu monólogo esquizofrênico estava no limite do tolerável:

“Você pensou sobre aquilo? Não tive nenhuma idéia melhor além de estrangular depois de ela beber um litro de cachaça. Você sabe… para deixar molinha. Fica mais fácil. Tenho mãos grandes, de pianista, dizia minha mãe. Cabem dois pescoços aqui”.

Juntou suas mãos com um pescoço imaginário entre elas, e ergueu aos céus para mostrar ao amigo confidente.

“Desse jeito é mais silencioso e mais limpo. Ela não terá ar para gritar e, como já te disse, sangue me apavora”.

O senhor ficou em silêncio alguns instantes, atento. Girou e girou a cabeça algumas vezes e voltou a delirar com o Garcez.

“Não. Não. Não. Você precisa entender que envenenar não tem charme algum, Além do que, é coisa de covarde. Tem que existir contato direto, enfrentar o problema de frente. Você consegue imaginar? A vida dela vai se esvair em minhas mãos. Sentirei aquelas artérias lindas do pescoço latejando cada vez mais devagar, mais fraca, nas palmas das minha mãos. Vou fitar os olhos dela até o terror de suas minúsculas pupilas pretas se abrirem por completo no alívio final. Neste momento tenho certeza que ela vai entender o mal que ela me fez. Talvez até perdoe ela… sabe que tenho coração mole”

O edifício fala, aparentemente, em uma linguagem secreta que apenas o senhor entende com clareza. Ele responde ao prédio.

“Isso sim. Desta idéia gostei. Mas antes de levar pra lá, pra sumir no fogo e na água, eu quero passar uma última noite com ela. Vou dormir abraçado para me despedir. Gostei. Você é mesmo dramático. Essa coisa de queimar o corpo sobre um barquinho de madeira, como se fosse uma pira flutuante, e deixa-la descer o Iguaçu… nossa. Isso vai ser bem bonito”.

O senhor se aproximou a um braço do Garcez, beijou a ponta de seus dedos da mão direita e a encostou com gentileza na parede meio encardida do edifício. Sussurrou.

“Será nesta noite”.

Foi embora e nunca mais foi visto.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

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