6:41Não aos pais fundadores

por Ivan Schmidt 

Uma das frases que sintetizam a realidade brasileira – em todos os tempos – foi dita pelo então ministro Oswaldo Aranha, amigo íntimo e confidente de Getúlio Vargas, muito tempo antes de a vaca ir para o brejo em meados dos anos 50 do século passado, quando a gente era feliz e não sabia.

“O Brasil é um deserto de homens e idéias”, repetia o hábil político gaúcho entre uma e outra roda do chimarrão, nas solitárias noites do Palácio do Catete, quando somente os raros que mereciam o apreço confiante do chefe se reuniam em torno dele.

A expressão matreira do ministro, premonitória por excelência e emblemática em todos os sentidos, se aplica ao atual momento político brasileiro – também indigente de homens e ideias – como uma luva. Muita razão tinha Oswaldo Aranha ao expor sua análise da trupe getulista em que pontificava uma legião de bajuladores, dissimulados e muitos traidores.

É o que se percebe hoje nos meandros do Executivo e do Congresso, presidido pelo senador Renan Calheiros e deputado Eduardo Cunha, ambos do PMDB e, não por mera coincidência, acusados pela Operação Lava Jato de empalmar propinas. Da mesma forma em ambas as instâncias do Legislativo federal há inúmeros parlamentares envolvidos até o pescoço nos malfeitos levantados pela Polícia Federal (alguns já condenados e presos por ordem do juiz Sergio Moro).

No âmbito do Executivo nem se fala e a mais recente evidência da podridão ética e moral que assola muitos gabinetes da Esplanada dos Ministérios, além da baixa umidade do ar do Cerrado, foram as surtidas da Polícia Federal nas residências e escritórios de ministros de Estado em busca de documentos que podem ser relevantes para as investigações da Lava Jato.

Uma vergonha inominável e a presidente da República segue muda como uma esfinge.

Não foi para amanhar esse terreno propício à dilapidação dos ideais encarnados pelo Partido dos Trabalhadores e seu candidato a presidente, e tampouco o favorecimento à evolução de uma corja seduzida pela cobiça aos muitos milhões de reais disponíveis nos cofres públicos, que a maioria de eleitores bem-intencionados botou o incansável Lula no Palácio do Planalto.

Assim como é estranho admitir que mesmo diante do desvendamento do Mensalão no primeiro governo Lula (um troco perto do Petrolão do governo Dilma), a maioria renovou a habilitação de Lula para o segundo mandato e, para repetir Cícero nas Catilinárias – “Ó tempos, ó costumes”, dar prosseguimento ao cortejo de governos petistas com a eleição e reeleição de Dilma Rousseff.

Não foi para cumprir esse triste papel farsesco que os pioneiros dos tempos da arregimentação e fundação do PT enfrentaram os riscos da época e foram à luta.

Uma dessas personalidades foi o grande intelectual Mário Pedrosa (1900-1981), signatário da ficha número 1 do partido, depois de uma vida inteira de coerência e fidelidade às causas populares. No tacanho desenrolar da crise brasileira, o senador Renan Calheiros, a propósito de uma questão interna do PMDB comentou que “o doutor Ulysses estava se virando no túmulo”, esquecendo que o insigne brasileiro sequer teve o privilégio de um enterro digno.

A mesmíssima constatação deveria ser feita pelos verdadeiros os petistas, se é que ainda existem, a respeito do que diria hoje Mário Pedrosa sobre o aterrador processo de desmoronamento e degradação protagonizado sem o menor remorso por um grupo de “quadros dirigentes” do PT, desde a primeira eleição de Lula.

O problema é que pouquíssimos sabem da importância da bagagem ética e moral representada por Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Fúlvio Abramo e tantos outros na histórica fundação do PT.

Para dar a essa gente um vislumbre da grandeza moral desse brasileiro é suficiente lembrar a carta aberta dirigida, em agosto de 1970, ao então presidente brasileiro Garrastazu Médici, em protesto ao processo aberto contra Mario Pedrosa acusado de difamar o Brasil no exterior com a denúncia de torturas.

A carta foi assinada por uma centena de intelectuais e artistas internacionais (os primeiros a assinar foram Calder, Moore e Picasso) e publicada pela New York Review of Books.

“O Partido dos Trabalhadores não é uma invenção de ninguém, nem mesmo de Lula e seus amigos, é, porém, um produto lento da história do Brasil”, revelaria Pedrosa em artigo publicado no Jornal da República na edição de 12 de dezembro de 1980, poucos meses antes de morrer aos 81 anos.

“A ideia do Partido dos Trabalhadores é a única ideia política realmente nova nesta década começante. A imagem do Estado, que o governo e a oposição nos apresentam é visivelmente uma ideia cansada, uma ideia do já visto. O Estado que concebe, o Estado que propõe é um Estado cujo objetivo fundamental é manter o status quo econômico e social do país e que garante o uso e o gozo dos monopólios que capitais estrangeiros e nacionais já vinham desenvolvendo sem o menor impedimento durante todas as décadas passadas”, acrescentou.

Numa profissão de fé infelizmente descolada da realidade (e não é necessário cansar o leitor com explicações), Pedrosa diria que “esse Estado que aí está, sem o Partido dos Trabalhadores como partido, é um estado incompleto e espúrio porque não permite que a classe trabalhadora se insira nele e possa aí representar um papel que lhe é fundamental”.

Escrevendo pouco depois da fundação e sabedor dos tempos difíceis que certamente viriam, Mario Pedrosa legou à posteridade mais um lampejo de sua lucidez política: “Ninguém pode traçar aprioristicamente e ainda menos doutrinariamente qualquer ação ou comportamento prévio para o nosso Partido dos Trabalhadores. O empirismo salutar será no fundo a sua força para a ação. O estado burguês não admite, porém, nenhuma transformação estrutural seja de que natureza for. Aqui surge, queira-se ou não, entre a burguesia e a classe dos trabalhadores um impasse, ou melhor, um choque de posições como o de dois times em disputa de área”.

Pois o PT, ficando de costas à herança intelectual, filosófica e ideológica de seus pais fundadores tomou a decisão, e ela se inscreveu com letras indeléveis na vulgata política do lulopetismo, de simplesmente “fazer o que todos os outros partidos fizeram”.

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2 ideias sobre “Não aos pais fundadores

  1. Clint Eastwood

    Quem deve estar se virando no túmulo é este cidadão, se soubesse em que se transformou o partido que ele fundou morreria de tanto desgosto. E salvem os “mortandelas” de plantão

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