6:21Um gosto por morte

por Ivan Schmidt

Diz a sociologia, e não é de hoje, “que uma sociedade é normal enquanto funciona, e que a patologia só pode ser definida em termos da falta de ajustamento individual ao estilo de vida de sua sociedade”. A assertiva é de autoria do psicanalista Erich Fromm, que fez enorme sucesso nos anos 60 e 70 do século passado ao publicar uma sucessão de livros em vários idiomas, inclusive no Brasil, tornando-se referência obrigatória em qualquer discussão sobre a problemática do homem.

A frase citada acima consta do livro Psicanálise da sociedade contemporânea (Zahar Editores, RJ, 1963), abrindo o capítulo que pretendia avaliar o grau de veracidade da suposição de enfermidade das sociedades e, por outro lado, dando curso à ideia da patologia da normalidade. O panorama não sofreu modificações profundas em sua concepção depois de algumas décadas, embora seja forçoso reconhecer que ao logo do tempo o comportamento humano tenha passado por abruptas circunvoluções pontuais.

Fromm dissertava, então, que dentre as principais paixões e tendências do homem, umas desaguavam fatalmente na saúde e felicidade, e outras na doença e infelicidade: “Uma determinada ordem social não cria essas tendências fundamentais, mas determina quais das paixões em potencial, que existem em número limitado, deverão tornar-se manifestas ou dominantes”.

À luz dessa construção intelectual, o psicanalista deduzia que “o homem é sempre, em qualquer cultura, manifestação da natureza humana, manifestação essa que é, em sua expressão específica, determinada pelos arranjos sociais sob os quais ele vive”.

Portanto, a saúde mental somente poderia ser desfrutada se o homem lograsse desenvolver plena maturidade segundo as características e leis da natureza humana. O reverso, ou seja, a insanidade mental assumiria a feição de malogro desse processo de desenvolvimento.

O pensador buscou no filósofo Spinoza uma ajuda para sua multidão de leitores: “Muitas criaturas se sentem possuídas de um mesmo afeto com grande persistência. Todos os seus sentidos estão afetados de forma tão profunda por um só objeto que elas acreditam que esse objeto está presente mesmo quando não o esteja. Se isso acontece enquanto a criatura está acordada, ela é julgada doente… Mas se a pessoa avarenta só pensa em dinheiro, se a ambiciosa só pensa na fama, não são consideradas doentes, mas apenas incômodas; geralmente se sente desdém por elas. Mas de fato a avareza, a ambição e coisas semelhantes são formas de insanidade mental, embora usualmente não sejam consideradas doenças”.

O entendimento do filósofo holandês, fixado há centenas de anos, é válido ainda hoje na medida em que o próprio Erich Fromm constata que muitas vezes nos encontramos “com criaturas que agem e sentem como autômatos; que jamais experimentam algo de realmente seu; que sentem o seu eu inteiramente como pensam que supostamente seja; cujo sorriso artificial substituiu o sorriso espontâneo; cuja tagarelice vazia substituiu a palestra comunicativa; cujo surdo desespero substituiu a dor autêntica”.

Uma de suas inúmeras ponderações se apresenta com impressionante viés de verossimilhança, sobretudo, se examinada sob o impacto dos atos de terror perpetrados em Paris, pelo Estado Islâmico, na sangrenta sexta-feira 13: “Os déspotas e as camarilhas dominantes podem conseguir êxito na dominação e exploração de seus semelhantes, mas não podem impedir a reação a esse tratamento desumano. Seus súditos se tornam medrosos, desconfiados, solitários e, se não por motivos externos, os sistemas entram em colapso em algum ponto, porque os temores, a desconfiança e a solidão incapacitam eventualmente a maioria para funcionar eficaz e inteligentemente”.

Nações inteiras ou grupos sociais dentro delas podem ser subjugados e explorados por muito tempo, mas reagem, escreveu Fromm, adicionando que isso pode ocorrer “pela apatia ou por tais atrofias da inteligência, iniciativa e perícias que gradualmente malogram em desempenhar as funções que serviriam aos seus senhores. Ou reagem pelo acúmulo de tal ódio e sentimentos destrutivos que levam à destruição a eles próprios, aos seus dominadores e ao sistema destes. E sua reação poderá criar tal independência e anseio de liberdade que uma sociedade melhor é construída sobre os seus impulsos criadores”.

O homem pode criar a vida, ou melhor, a mulher pode criá-la ao dar à luz uma criança, mas o homem também pode destruí-la. Segundo o psicanalista “o fato de o homem poder destruir a vida é tão miraculoso quanto o de poder criá-la, pois a vida é o milagre, o inexplicável. No ato de destruir, o homem coloca-se acima da vida; transcende a sim mesmo como criatura. Assim, a alternativa última do homem, no tocante a seu impulso de transcender a si mesmo, é criar ou destruir, amar ou odiar”.

Com pleno domínio da matéria, o inquiridor de almas propunha também que se o homem não conta com uma estrutura de orientação subjetivamente satisfatória não pode viver com saúde mental, concluindo que “por mais irracional e imoral que seja uma ação, o homem sente um impulso insuperável de racionalizá-la, isto é, de demonstrar a si mesmo e aos demais que sua ação foi determinada pela razão, pelo consenso comum, ou, pelo menos, pela moralidade convencional”.

No final da década de 90, a dois anos da virada do século, a Companhia das Letras publicou um dos livros do diplomata e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet – As razões do iluminismo– no qual o autor discute uma série de dados, alguns alarmantes, na bem-sucedida tarefa de elucidar com precisão cirúrgica um cenário carregado de nuvens sombrias prenunciadoras da vindoura catástrofe da existência humana.

Escrevia Rouanet que “horrorizar-se com a coexistência da cultura com a barbárie é algo que só pode ocorrer a quem tinha, de saída, uma visão idealista da cultura, vista como a esfera dos valores excelsos, que nada tem a ver com a realidade sórdida da vida. Ora, ninguém pode sustentar essas puerilidades depois de ter lido Marx e Freud”.

Lembrava também Walter Benjamin que pôde dizer que “todos os bens culturais […] têm uma origem sobre a qual não se pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, mas à corvéia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”.

A cultura pode aliar-se à barbárie, escreveu Rouanet, “mas a ausência de cultura é a barbárie” e “sua demolição é sempre, necessariamente, um gesto bárbaro, quer se trate de uma horda goda incendiando uma biblioteca romana, quer de um guarda vermelho chinês quebrando discos de música ocidental”. Ou, contextualizando, um grupo de fanáticos do EI detonando sítios arqueológicos com milhares de anos, degolando prisioneiros, se explodindo ou metralhando centenas de vítimas em atentados suicidas.

O ensaísta resgata o famoso dito de Goebbels “que sentia vontade de sacar o revólver quando ouvia falar em cultura”, ao ilustrar o desconforto do poder fascista – seja ele qual for – diante “de uma cultura vista como subversiva”.

O Goebbels da estação usa turbantes, barbas longas e cobre o corpo com mantos de seda e, em lugar da nefasta pregação de um Reich que deveria durar ao menos mil anos, propaga o estabelecimento de um califado cujo propósito manifesto é submeter pela força das armas e do terror os demais estados islâmicos, fundando um governo único.

Apologista do ateísmo e iconoclasta implacável, o jornalista Christopher Hitchens em Deus não é grande (Ediouro, RJ, 2007), ao descrever o islamismo, indica que o mesmo supriu os povos árabes de um credo distintivo “para sempre identificado com seu idioma e suas impressionantes conquistas posteriores, que, embora não tão marcantes quanto as do jovem Alexandre da Macedônia, certamente transmitiram a ideia de que eram sustentadas por um desejo divino até eles começarem a sumir nos limites dos Balcãs e do Mediterrâneo”.

Todavia, prossegue, “quando estudado, o islamismo não é muito mais do que um conjunto de plágios bastante óbvio e malmontado, se valendo de livros e tradições anteriores quando a ocasião parece exigir. Assim, longe de ter ‘nascido à luz clara da história’, como Ernest Renan tão generosamente definiu, o islamismo é, em suas origens, tão nebuloso e aproximado quanto àqueles dos quais se valeu. Ele faz afirmações grandiosas sobre si mesmo, invoca a submissão prostrada ou ‘rendição’ como máxima para seus seguidores e exige deferência e respeito dos não-crentes. Não há nada – absolutamente nada – em seus ensinamentos que sequer possa começar a justificar tal arrogância e presunção”.

Em setembro de 2014, o porta-voz oficial do EI, Abu Mohamed Al-Adnani, ordenou a seus partidários que executassem os “descrentes” ocidentais, acrescentando um comentário emblemático: “Especialmente os sujos e desprezíveis franceses”.

Quatro meses depois vieram os ataques à redação do jornal Charlie Hebdo e a um supermercado judaico em Paris, seguidos da decapitação de um empresário em Lyon e a tentativa de explodir um trem de alta velocidade entre Amsterdã e Paris, a capital francesa foi novamente abalada. O jornal El Pais de Madri, então, passou a perguntar: “O que motiva o Estado Islâmico a se irritar com a França?”.

O repórter Alex Vicente entrevistou várias pessoas, a exemplo do ex-ministro socialista da Cultura, Jack Lang. Segundo ele “trata-se de uma investida contra os valores do Iluminismo do século XVIII, contrários a sua visão totalitária do mundo”. Ele frisou que o terror mira todo o Ocidente, “mas a França é um país especialmente simbólico não só por nossa firme participação militar na Síria, mas por ser o lugar da Revolução de 1789 e do Século das Luzes”.

Consultor internacional especialista em financiamento das redes jihadistas, Jean-Charles Brisard, diz que “o apego dos franceses aos valores republicanos, especialmente o laicismo, é algo que contraria o Islã radical, incluindo seus partidários residentes na França”. Para o cientista político Gilles Kepel, “o passado colonial do país também está relacionado à violência islâmica da qual a França foi vítima nos últimos anos”.

Os recrutas fanatizados do III Reich – Rudi, Hans, Fritz e Otto – hoje atendem pelos nomes de Mohamed, Aslan, Ibrahim e Abdelhamid…

 

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