6:54Passado e futuro em choque na Argentina

por Ivan Schmidt 

A escolha do substituto da presidente argentina Cristina Kirchner ficou para o segundo turno, a ser realizado no próximo dia 22 de novembro, no que os hermanos chamam de “ballotage”, preferindo a sofisticada expressão francesa equivalente. Os candidatos são o neoliberal Maurício Macri e o peronista Daniel Scioli – apoiado pela presidente – que mesmo com 10 pontos percentuais de vantagem sobre o contendor nas pesquisas da véspera do primeiro turno, viu a diferença se esfumar em empate técnico com apenas 2,5 pontos a frente do adversário.

O problema é que o cenário político argentino sofreu inesperada reviravolta, e Macri passou a ser o candidato favorito para a presidência da República na eleição marcada para o penúltimo domingo do mês. O impacto foi imediatamente acusado e o comando de campanha de Scioli saiu a campo para evitar a vitória de um empresário egresso da direita, fato sem precedentes na crônica política recente do país vizinho.

Segundo a previsão de analistas a campanha está muito difícil, mesmo porque o kirchnerismo foi atingido por um golpe duríssimo, “talvez mortal”, perdendo inclusive a província de Buenos Aires, a mais importante da Argentina do ponto de vista socioeconômico e feudo eleitoral do peronismo.

Cabeça da coligação Frente para a Vitória e candidato da situação, Scioli trata de convencer o eleitor a tirar a Argentina do encontro com a ocorrência de um provável e severo ajuste fiscal e, num argumento que bate à porta do desespero, assegurando que “só o peronismo, com seu enorme poder territorial e sindical pode governar o país”.

Logo após o primeiro turno, o correspondente do jornal espanhol El País em Buenos Aires, Carlos Cué, escreveu que “o onipresente discurso de esquerda e a favor do Estado” se prolongou pelos 12 anos do kirchnerismo, servindo agora como espinha dorsal do discurso de Daniel Scioli, para quem “a vitória de Macri significaria, além disso, uma mudança com implicações regionais importantes”.

Na verdade, a Argentina sob os governos de Néstor e Cristina Kirchner, o casal K, tornou-se “um pilar da esquerda latino-americana” e na visão de muitos “um líder como Macri, com mais simpatia pelo liberalismo e pelo Partido Popular (PP) da Espanha, modificaria radicalmente os equilíbrios regionais e poderia marcar uma mudança de ciclo”, afirmou Cué.

As peças do tabuleiro começaram a ser movidas na direção de Daniel Scioli por iniciativa da presidente Cristina Kirchner, que ao que parece pretende ganhar o segundo turno para, então, abrir as portas da Casa Rosada para o pupilo. Ato contínuo a ordem foi expedida: é preciso ganhar a qualquer custo. A campanha contra Macri ganhou impulso imediato e os grupos mais aguerridos do peronismo do século 21 (ou o que ainda resta dele), especialmente o movimento jovem La Cámpora, saiu às ruas para acusar Macri de estar projetando o ajuste fiscal e a adoção duma política econômica neoliberal, dizem, como a executada pelo ex-presidente Carlos Menem (1989-1999), que curiosamente também era peronista.

O conhecido jornalista Jorge Lanata, do grupo Clarin, que entrou em rumoroso processo judicial contra o sistema K (Néstor e Cristina), no livro A década roubada (Planeta, SP, 2014), descreve a luta do conglomerado de comunicação para manter incólume a poderosa rede de jornais, emissoras de televisão e rádio e outras mídias, montada na capital e nas maiores províncias.

Lanata escreveu que, provavelmente, a Argentina chegaria a 2015 “com estagflação, recessão e inflação alta e, ao mesmo tempo, com um ambiente sindical e social em convulsão”. Segundo dados relativos a 2013, menos da metade dos alunos terminam o ensino médio, postando-se a Argentina atrás da Bolívia, Paraguai e Equador. “De forma paradoxal, em meio a uma gestão que reivindica – ao menos formalmente – o papel do Estado, o número de matrículas nas escolas estatais registrou uma queda ininterrupta desde 2003: 250 mil alunos a menos. O êxodo da educação pública resultou em um aumento de 18% do número de inscrições em escolas particulares. Apenas 14% dos estudantes do ensino superior recebem o diploma, de acordo com um relatório publicado pela Unesco. O governo, enquanto isso, orgulha-se de destinar uma fatia cada vez maior do PIB à educação; é evidente, com base nas cifras, que se trata de um gesto ineficiente”, frisou o crítico.

Havia na Argentina, enquanto Lanata compulsava as estatísticas em busca de dados para completar o livro publicado no ano passado, 746 mil jovens entre 18 e 24 anos que não estudavam nem trabalhavam (os ni-ni), ou seja, 24% dos jovens nessa faixa etária, na maioria oriundos das classes menos favorecidas da sociedade. Tal realidade complicava sobremaneira a chance de encontrar emprego bem remunerado, fato que gerava um efeito colateral: o desemprego entre os jovens (18,5%) era quase quatro vezes maior que o desemprego dos adultos (5,1%). Havia também números preocupantes nas áreas de habitação popular e saúde pública, a proliferação de favelas, do tráfico de drogas, alcoolismo e violência.

“A Argentina desperta do kirchnerismo como que desperta de um sonho que foi se transformando, lentamente, em pesadelo”, escreveu Lanata no último parágrafo do livro, lembrando de passagem as raízes peronistas do sistema K: “A Argentina tropeça sempre na mesma pedra. Tomara que esse tropeço sirva para entender que não há mudanças rápidas, que a mudança é lenta, que necessita de compromisso e trabalho, e que este será um país quando decidirmos trabalhar sem esperar para ver os resultados”.

É exatamente nesse contexto que se situam as candidaturas de Daniel Scioli e Maurício Macri, com suas visões antagônicas de perpetuação do sistema de governo implantado no final dos anos 40 do século passado, quando o general Juan Domingo Perón foi eleito presidente da República, ou o ansiado rompimento com um modelo já sepultado pela evolução das ideias políticas.

A marca mais abjeta do peronismo, que rivaliza com o castrismo em termos de longevidade, foi sua irrestrita imersão no nazifascismo, transformando a Argentina em território livre para a entrada de ex-oficiais das forças armadas do Reich, antes mesmo do término da guerra. Quem conta é o historiador Uki Goñi em A verdadeira Odessa (Record, RJ, 2004). “Nos últimos dias da guerra, enquanto as altas autoridades nazistas resistiam em Berlim ao avanço dos Aliados, a neutra Espanha tornou-se o principal porto seguro para os fugitivos nazistas e seus colaboradores franceses e belgas que escapavam dos países libertados da Europa”, acrescentando que o destino de todos era a Argentina.

“Todos se encontrariam com Perón em Buenos Aires. Por mais de cinco décadas, a estrutura de salvação organizada por esses homens, com a cumplicidade de Perón e a ajuda de altos dignitários da Igreja Católica, permaneceu secreta”, informou Goñi.

O historiador registrou em sua longa narrativa que a discussão do plano de fuga de ex-oficiais e funcionários do Reich era feita em alto nível, sobretudo no que diz respeito ao acordo de imigração finalmente selado entre o papa e o governo Perón: “Em junho de 1946 o secretário de Estado do Vaticano em exercício, cardeal Giovanni Battista Montini, tratou do assunto com o embaixador argentino no Vaticano. Montini (futuro papa Paulo VI) manifestou o interesse do papa Pio XII em arranjar a emigração ‘não apenas de italianos’ para a Argentina”.

Goñi escreveu também que “o papa considerava a Argentina o único país onde emigrantes poderiam encontrar ‘uma solução satisfatória para suas necessidades’. O santo padre queria que os ‘especialistas do Vaticano entrassem em contato com especialistas argentinos para preparar um plano de ação’. O embaixador argentino entendeu que o interesse do papa estendia-se aos homens confinados nos campos de prisioneiros de guerra na Itália – ou seja, oficiais nazistas – e informou imediatamente a Buenos Aires sobre a proposta”.

Ao mesmo tempo em que a história magnifica os homens, pode também transformá-los em anões morais. É possível que o próprio candidato Daniel Scioli e muitos de seus partidários desconheçam essa faceta asquerosa do peronismo e de seu todo-poderoso chefe, mas sobre eles também respinga um pouco desse passado negro que acobertou criminosos.       

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