7:51Futebol, o câncer e a sombra

por Juca Kfouri

O futebol não será o tema da coluna de hoje.

Embora seja, porque aqui se faz referência ao escritor uruguaio Eduardo Galeano, morto no último mês de abril, autor do portentoso “Futebol ao Sol e à Sombra”, uma ode a craques como Pelé, Alfredo Di Stéfano, Diego Maradona, Zizinho, Didi, Garrincha, Obdulio Varela, Yachin, Leônidas da Silva, Platini, Domingos da Guia, Friedenreich e tantos outros, assim como uma crítica implacável, e romântica, aos desvios da bola.

É dele este trecho: “A história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. Neste mundo, o futebol profissional condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável. Ninguém ganha nada com essa loucura que faz com que o homem seja menino por um momento.

Por sorte ainda aparece nos campos, embora muito de vez em quando, algum atrevido que sai do roteiro e comete o disparate de driblar o time adversário inteirinho, além do juiz e do público das arquibancadas, pelo puro prazer do corpo que se lança na proibida aventura da liberdade”.

Mas é da filha dele, Verônica, que esta coluna trata.

Ela recebeu em nome do pai, anteontem, no Tuca, um dos troféus “in memorian” na solenidade de entrega do 37º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.

Verônica subiu firme ao palco.

Uma mulher bonita, simpática, cativante, que ao falar do pai lembrou que ele havia morrido de câncer no pulmão e pediu aos tantos jornalistas que não omitissem o nome da doença, que não a condenassem à sombra, porque tabus são formas de censura.

E anunciou que veríamos um filmete, com texto do filho dela, em homenagem ao avô.

O neto lamenta a perda, deplora que o tabaco o tenha privado de conviver mais tempo com o avô, lamenta que todos tenhamos perdido novos livros de Galeano, fumante inveterado.

Mas não para por aí.

De repente não é mais o neto quem fala, mas o filho.

O filho que conta à plateia que também sua mãe está com câncer, no quarto estágio da doença, com apenas mais três meses de vida, segundo prevê o oncologista.

“Não tenho filhos”, diz ele. “Se os tiver, proibirei que fumem, como farei com minha sobrinha de três anos, simples assim. Eu, prestes a completar 30, provavelmente não terei minha mãe mais comigo no dia de meu aniversário”.

Deu até pena do apresentador da cerimônia que, como o público, pareceu grogue, atingido por um soco no estômago, sem palavras.

Verônica ainda olhou para ele e pediu desculpas, sob aplausos dos presentes, em coletiva comoção.

Jamais havia visto algo parecido, tão forte, tão duro e, ao mesmo tempo, tão terno, tão suave.

Inaceitável a ideia de que ela não poderá estar na festa do 38º Prêmio Vladimir Herzog ou na do 30º aniversário de seu filho.

Em tempo: um dos patrocinadores do prêmio é a Souza Cruz.

Em nenhum momento passou pela cabeça dos organizadores da festa, do Instituto Vladimir Herzog, sequer sugerir à Verônica que não apresentasse o filme.

Fumar faz mal. Ter coragem é essencial.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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