6:34Pão, circo e… banho

por Ivan Schmidt

Tenho lido livros estranhos e curiosos admitindo que em alguns mal consegui passar das primeiras páginas, embora outros tenham merecido (apesar da estranheza) total fruição. Faço uma resumida lista e espero obter a aquiescência dos abnegados que frequentam esse espaço, ao menos, para algumas de minhas dicas.

Lembro-me do arrepiante Inferno (Strindberg), do criptográfico Morravagin (Blaise Cendraz), do priáprico História do olho (Bataille), do polêmico Amor a três (Bárbara Foster), do hilariante Jaime Bunda agente secreto (Pepetela) e dos fantásticos Cem anos de solidão (Garcia Marquez), A invenção de Morel (Adolfo Bioy Casares), Bestiário (Julio Cortázar) e A hora dos ruminantes (J. J. Veiga), entre tantos outros.

Nenhum deles, contudo, tão insólito na sua tessitura específica como Passando a limpo — O banho: da Roma antiga até hoje, escrito pela jornalista norte-americana Katherine Ashenburg e publicado no Brasil, em 2008, pela editora paulista Larousse um ano depois de ter saído nos Estados Unidos.

A pesquisa histórica efetuada em fontes bibliográficas cuja relação ocupa seis páginas, além das centenas de notas de esclarecimento a pormenores de cada capítulo do volume de 300 páginas, assinala que para um romano do primeiro século de nossa era estar limpo significava ter ficado de molho em água a diferentes temperaturas, pelo menos por duas horas diárias.

Já para os franceses aristocratas do século XVII isso se conseguia trocando a camisa de linho, uma vez por dia, além da utilização de perfumes de várias fragrâncias que tanto obliteravam o próprio odor, como o de outras pessoas. Água nem pensar.

Katherine inicia sua jornada pelo que denominou adequadamente história da limpeza afirmando que “ritos de passagem e religião não são os únicos contextos nos quais o alcance do banho se estende muito além do banheiro. Até o final do século XIX, banhos terapêuticos desempenharam um papel significativo no repertório médico ocidental. É fato que nossos padrões modernos de limpeza são possibilitados por instalações sanitárias modernas e outros feitos da engenharia, mas toda tecnologia nasce de um desejo mais do que conduz a ele: as termas romanas dispunham de sistemas sofisticados de aquecimento e fornecimento de água, que quando o banho deixou de ser prioridade ninguém se preocupou em imitar”.

Os gregos antigos, escreveu ela, limpavam-se pelas mesmas razões que nós, ou seja, para se sentirem mais confortáveis e atraentes. E também porque esse hábito era recomendado como um cuidado com a saúde: “Hipócrates, o grande médico do século V a.C., era adepto dos banhos: acreditava que uma combinação criteriosa de imersões em água fria e quente podia proporcionar equilíbrio saudável de todos os humores importantes – ou líquidos constitutivos — do corpo. Banhos quentes, ao amolecer o corpo, também preparavam-no para receber os alimentos e supostamente ajudavam na cura de diversos males, da dor de cabeça à retenção urinária. Às pessoas que sofriam dor nas articulações eram prescritos banhos frios, e as doenças femininas eram tratadas com banhos de vapor aromáticos”.

O historiador Edward Gibbon, que no século XVIII foi cronista do declínio e queda do Império romano, tinha por convicção que os banhos quentes eram responsáveis pelo enfraquecimento e a queda de Roma. Katherine diz também que “os homens da Era Vitoriana, influenciados pelo estudo do grego clássico, acreditavam que o Império britânico constituíra-se sobre o revigorante banho frio matinal”, ao passo que “homem que toma banho quente” é aquele que carece de masculinidade.

Outra realidade importante na história da limpeza foram as termas, geralmente “um palácio grandioso construído e mantido pelo governo”. Segundo o relato que estamos percorrendo “até mesmo os romanos mais enfastiados ficavam boquiabertos de espanto e admiração”.

“A fase áurea das termas imperiais iniciou-se por volta do ano 25 a.C., quando Agripa, sucessor de Augusto, abriu as casas batizadas com seu nome. As termas de Agripa destacavam-se pelo tamanho (os prédios mediam, em seu limite máximo, 120 por 100 metros) e esplendor”. Ao morrer, o imperador deixou-as como legado ao povo romano, acrescentou Katherine.

Foi nesse tempo, na medida em que as termas ganhavam cada vez mais sofisticação que o poeta satírico Juvenal cunhou a expressão “pão e circo”, ao descrever como o governo “comprava” o aplauso do populacho com comida barata e entretenimento estupidificante. Segundo a pesquisadora “tornar-se lautus, ou limpo com o banho, era essencial para o auto-respeito de uma pessoa, assim como para sua saúde”.

Na altura do século XIV as chamadas casas de banho reapareceram em toda a Europa. Londres tinha, pelo menos, 18 desses estabelecimentos. Em 1292, com a população de 70 mil habitantes, Paris tinha 26 casas de banho, também bastante difundidas na Alemanha: “Lá, mesmo antes do retorno dos cruzados o costume do banho manteve-se popular. Uma versão de banho chamado russo ou a vapor chegou à Alemanha pelo norte: Ibrahim ben Yacub, diplomata e geógrafo que no ano de 973 visitou a Saxônia e a Boêmia, descreve as saunas que por lá frequentou”.

O século XVI não foi notavelmente exigente quanto à limpeza, mesmo nos mais altos níveis sociais: Elizabeth I da Inglaterra banhava-se uma vez por mês, como ela dizia “quer eu precise ou não”. O século seguinte foi muito pior de acordo com as informações coligidas por Katherine Ashenburg, que assegurou ter sido “espetacularmente sujo, até mesmo desafiadoramente sujo. O sucessor de Elizabeth, James I, declarava abertamente que lavava apenas os dedos das mãos. O odor do corpo de Henrique IV da França (1553-1610) era notório, assim como o de seu filho Luís XIII. Este se orgulhava de dizer: ‘Pareço-me com meu pai, cheiro a axilas’”.

A pesquisa descobriu que até mesmo o ensaísta francês Michel de Montaigne lamentava o desaparecimento do banho, mas a ele se referia no final do século XVI como uma prática totalmente extinta. O brilhante intelectual ainda hoje cultuado nos meios acadêmicos dos países mais desenvolvidos, sobre o banho, revelou acreditar que “não causamos nenhum mal à nossa saúde quando abandonamos este costume… de lavar nosso corpo todos os dias. Portanto, não posso imaginar que nos tornamos piores ao manter os membros do corpo cobertos e nossos poros entupidos de sujeira”.

“Todos na corte de Luís XIV sabiam sobre o mau hálito do Rei Sol”, escreveu Katherine, o que obrigava a rainha a cobrir-se de perfumes para suportar o bodum do marido.

Em 1780 – Arthur Young — um inglês viajando pela França e Itália, teve a atenção chamada para os padrões de higiene e decoro dos locais que visitava. Katherine reproduz a impressão do “turista” que anotou o hábito continental “de cuspir dentro de casa e o triste estado das casas de necessidade, ou privadas”, que “o escandalizavam, assim como a falta de vergonha com que homens e mulheres se aliviavam em público”.

Young também constatou que “apesar desses maus hábitos, os franceses são mais limpos com seus corpos e os ingleses, com suas casas”. A opinião do viajante veio da observação que na maioria das moradias francesas uma pequena peça de mobília – o bidê – era uma presença universal. Katherine retruca, porém, que nessa afirmação Young “estava redondamente enganado, pois os bidês permaneceram incomuns até o século XX. Somente as moradias mais ricas e luxuosas do século XVIII os tinham. Mas ele estava certo em classificar ‘a cadeira da limpeza’, como era chamado o bidê, de peça significante da mobília”.

Um manual usado por médicos em 1763 ensinava que “se a transpiração ou suor permanecer nestas partes (axilas, virilha, área púbica, genitais, períneo ou entre as nádegas), a quentura as inflamará e, além do cheiro desagradável resultante, e que se espalha, parte dessas exalações, e da substância da qual elas são formadas, é carregada por veias absorventes e levada para a circulação, onde poderá somente causar danos, levando os fluidos corporais ao estado de putrefação”.

Abstraído o tom fantasioso dessas afirmações, lembra Katherine que “tais crenças coexistem com uma nova fé no poder da água para evitar esses danos”. Tanto que a autora não hesita em dizer que “nada ilustra a nova importância da água e do banho melhor do que seu papel na vida de Napoleão e Josefina”.

“Na transformação do mundo em um local limpo e sem odores ‘ruins’, a década de 1920 foi um divisor de águas. Como as cidades cresceram e as pessoas trabalhavam próximas umas das outras, em escritórios e fábricas cheios de gente, incomodavam-se com os odores produzidos pelo próprio corpo ou pelo dos outros. A inserção das mulheres no mercado de trabalho acelerou esse fenômeno. Essa necessidade que surgiu, primeiramente, na Europa no final do século XVIII, tornou-se uma obsessão americana. Ao mesmo tempo, a prosperidade americana crescia. As pessoas cada vez mais tinham condições de comprar produtos que lhes permitiam viver sem odores desagradáveis, num ambiente ‘seguro’, onde não ‘ofendiam’ nem eram ‘ofendidas’”, comenta a jornalista.

A conclusão dessa ampla investigação de costumes sociais – a limpeza em particular – sugere que nessa questão “o futuro permanece misterioso, mas ele será sempre influenciado pela disponibilidade de recursos e pela mentalidade da opinião pública. Por exemplo, só um severo racionamento de água nos faria mudar nossos hábitos de banho de maneira eficaz. Uma coisa é certa, no fim do século XXI as pessoas rirão e se admirarão do que consideramos hoje limpeza”.

Então, como perguntar não ofende, já tomou seu banho hoje?

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