18:40Horrores contemporâneos

por Luiz Caversan

1 – Por conta dos conflitos nas praias do Rio de Janeiro no último fim de semana, dentre as muitas manifestações que pulularam na internet se destacou um vídeo dos anos 90, uma reportagem da TV Manchete em que uma moça de seus 18 anos destilava um rosário imenso de preconceitos contra a gente “sem educação” que invadia sua praia no fim de semana.

A reportagem tratava da superlotação das praias cariocas, e a tal moça não tinha dúvida de que a culpa era dos favelados e suburbanos que procuravam se divertir no fim de semana, o que a enchia de “vergonha”.

Entre outras pérolas, ela disse: “Tenho horror de olhar estas pessoas mal educadas e pensar que elas são do mesmo país que eu” (…) “Não são brasileiros, não, uma sub-raça” (…) “Não pode tirar o pessoal do Méier, do Mangue e levar à praia em Copacabana”.

Disse mais, coroando seu discurso de ódio com a conclusão de que se deveriam fechar as praias para quem não pudesse pagar para entrar…

Mesmo se tratando de um vídeo antigo, causou polêmica. Não tanto, ou menos mal, do meu ponto de vista, por causa das pessoas que se indignaram com ideias tão odiosas, racistas e totalitárias saindo da boca de uma jovem bem articulada e bonita. Não, o pior foram os comentários favoráveis aos desatinos verbais da jovem, como se a solução mesmo fosse proibir a praia aos pobres, pretos e afins, como se somente a classe média “educada” tivesse direito ao lazer do fim de semana, como se fossem, de direito e não apenas de fato, dois povos e dois países.

A coisa acabou fazendo tanto barulho que a moça, hoje com 47 anos e identificada como Ângela Moss felizmente veio a público e postou um comentário no site em que seu vídeo foi veiculado. Disse o seguinte: “Infelizmente era eu neste vídeo, quando tinha 18 anos. Eu era uma criança retardada e com pouco conhecimento. Mesmo culta, era alienada. (…) Quando na eleição da Dilma eu escrevi um manifestou dizendo que havia sido de ultra direita, muita gente não acreditou. O Olavo de Carvalho, filósofo como eu, começou como comunista e virou o que é agora. Eu fiz o caminho contrário. Se tenho vergonha? (…) Tenho orgulho de ter podido evoluir. (…) Fico feliz que pessoas como vocês fiquem indignadas com esse vídeo, o que me perturba mesmo são as muitas que escreveram me parabenizando. (…) Não há como negar: essa é a face triste de uma sociedade sem compaixão e egoísta e, sim, um dia já foi a minha face. (…) “

*

2 – Bolsonaro é um sobrenome italiano. Como o meu. O meu é do Vêneto, Norte da Itália, onde nasceu meu avô. Bolsonaro é provavelmente da Toscana, região centro-norte.

Desconheço a trajetória dos Bolsonaro entre a Itália e o Brasil. Mas certamente participaram de um dos fluxos migratórios por meio dos quais italianos fugiam da fome, da miséria, da morte. No Norte dos meus avós, na virada do século 19 para o 20, havia malária, tifo, escorbuto, peste e outras doenças típicas de lugares sem água tratada, saneamento, remédios, assistência. Comia-se polenta (daí o apelido de “polentones” dado aos do Vêneto…) e o que se catava nos bosques, caça, cogumelos e afins.

No centro-norte dos Bolsonaro não devia ser muito diferente.

Assim como os de outras nacionalidades, os italianos que migraram para o Brasil foram acolhidos, encontraram trabalho, constituíram famílias, fincaram raízes.

Ralaram muito, é claro, meu avô trabalhou na roça puxando arado para criar 11 filhos, meu pai, analfabeto, foi mecânico no chão de fábrica para criar três, dando a mim recursos para estudar, me formar, tornar-me jornalista –fui o primeiro membro “letrado” da família…

Mas, assim como os Bolsonaro de antigamente, os Caversan (na verdade Caverzan) tiveram um porto seguro no Brasil, passaram a fazer parte da grande família brasileira, que é italiana, portuguesa, libanesa, síria, japonesa, grega, suíça, alemã e de tantas outras nacionalidades que, em meio à desgraça e ao sofrimento, aqui conseguiram a acolhida redentora, quando outros países do seus continentes, e em alguns casos o seu próprio país, os tratavam como escória.

Terá sido esse o motivo de o deputado Jair Bolsonaro ter chamado os refugiados que se espalham mais e mais e chegam, em pequena parte, ao Brasil, de “escória do mundo”? Ele estaria, se então pudesse, ao lado dos que, na Itália daqueles tempos, queriam mais que os pobres e desvalidos fossem embora mesmo, ainda que sendo membros de sua própria família?

O parlamentar chamou os refugiados de “escória do mundo” numa entrevista ao repórter Frederico Vitor, do jornal “Opção” de Goiás. Claro que levou uma saraivada de críticas, o que é comum em sua trajetória de intransigências, intolerâncias e preconceitos, mas neste caso procurou dizer-que-não-disse, ou melhor, que se expressou mal…

Mas, na mesma entrevista, o deputado afirmou com todas as letras: quer que a presidente Dilma deixe seu posto, “infartada, com câncer ou de qualquer outra maneira”.

Disso ele não se retratou…

*

3 – Terminei de ler numa tacada, e recomendo muito, o mais recente livro de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda Estou Aqui” (Editora Alfaguara, 295 páginas). Trata-se de relato biográfico, cujo fio condutor é a mãe do autor, Eunice Paiva, que foi dona de casa, que casou-se com o empresário Rubens Paiva, que viu seu marido ser eleito deputado, ser cassado, ser preso em sua própria casa; que foi presa, que conviveu com o desaparecimento do marido, que lutou décadas para procurar esclarecer os detalhes do que veio a se comprovar como o assassinato de Paiva pelas forças da repressão que se seguiu ao golpe militar de 1964, que manteve e sustentou a família de cinco filhos, que estudou direito, que se formou advogada, que se dedicou a inúmeras causas sociais e que, passando já dos 80 anos, enfrenta os terríveis sintomas do Alzheimer, que a acomete atualmente.

É um livro tocante, registro histórico necessário de uma vida de luta, sofrimento e dignidade.

E mais: o livro agrega documentos que dão conta de que Rubens Paiva foi assassinado nas dependências do Exército no Rio de Janeiro em decorrência de uma sessão de tortura praticada pelo então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho, segundo depoimento do coronel da reserva Armando Avólio Filho.

Traz também reprodução de depoimentos de outros militantes, um deles digno de registro, porque é exemplar, dá toda a dimensão do ponto a que pode chegar a banalização do mal, a displicência e naturalidade com que o horror é tratado por quem o pratica.

Veja o que disse ao Ministério Público Federal o ex-militar e integrante das forças de repressão Riscala Corbage, conhecido nos porões pela alcunha de Dr. Nagib, garantindo que em suas mãos nunca morreu ninguém:

“Pau de arara? O cara não queria mais, era muita dor… As vezes eu era chamado para a sala do ponto, a primeira sala, era a sala terrível, a sala mais terrível, até o diabo, se entrasse ali, saia em pânico. Eu chegava e falava: “Zairo, você quer descer do pau de arara?”. Ele dizia: “Quero!”. Mas você vai conversar legal comigo? Vou mandar te levar para uma outra sala, tu vai sentar, vou te dar água, mas nós vamos conversar legal. Agora eu tenho dados que você deve me dizer de outras pessoas que te indicaram, se você não me disser, você vai voltar para a sala do ponto. ()”.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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