6:34Um Himalaia solitário

por Ivan Schmidt

Ernani Reichmann, o Kierkegaard dos trópicos, como esse espaço registrou na semana passada evocando o cineasta Sylvio Back, ele também um dos nomes obrigatórios no cenário cultural paranaense, era “homem cordial e conversador”, mas igualmente “um renitente solitário” que podia ser visto “com as mãos cruzadas atrás, paletó tipo jaquetão, e arqueado para frente, andava a passos curtos pelas ruas de Curitiba como um monge, o chapéu frouxo sobre a cabeça, remoendo um ralo bigode que fazia questão de cultivar aparado”.

No dizer do grande crítico George Steiner “o realmente grande erudito tem um faro especial para encontrar o documento escondido, mas fundamental, para concatenar circunstâncias aparentemente díspares”. Diz ainda o famoso autor de resenhas publicadas na revista semanal The New Yorker por mais de 30 anos, que “tal como o magistral tradutor, ou autor, ou intérprete musical, o erudito realmente grandioso se torna uma unidade com seu material, por mais abstruso, por mais recôndito que seja. Ele amalgama a força de sua personalidade e perícia técnica à época histórica, ao texto literário ou filosófico, à trama sociológica que está analisando e nos apresentando”.

Steiner escreveu isso em relação aos pensadores judeus alemães Gershom Scholem e Walter Benjamin, em crítica publicada no dia 22 de janeiro de 1990, referindo-se à amizade que uniu os jovens que se conheceram em 1915: “A amizade dos dois se tornou matéria de lenda e de pesquisa acadêmica. Ela mostra pontos de profunda afinidade”.

Ambos eram “estranhamente alertas ao ambiente marginal, mas também criativo, das condições sociais e pessoais em que viviam. Eram homens do intelecto – do saber, da citação e do comentário num veio quase rabínico”.

O mesmo se poderia dizer sem o menor constrangimento sobre a carpintaria intelectual de Ernani Reichmann, “hoje um autor esquecido” como escrevia Sylvio Back em 2013, ressaltando a obra seminal do gaúcho-paranaense ao destacar o livro O trágico em Octávio de Faria (1978), no qual se detém na expiação da culpa de inspiração kierkegaardiana em A tragédia burguesa? Ou, ainda, em A poética de Carlos Nejar (1973), co-assinado pelo crítico paranaense Temístocles Linhares (1905-1993), segundo Back “rigorosa exegese do fabro do poeta gaúcho, que resume laivos da angústia do filósofo dinamarquês?”.

O amigo iniciado na obra de Reichmann não apenas se insurge (com inteira razão) contra o absurdo esquecimento dispensado a um dos mais notáveis pensadores patrícios da segunda metade do século passado, tão-somente um dos muitos buracos na esfarrapada colcha de retalhos que se chama “cultura brasileira”, mas arrisca-se a emitir irrepreensível juízo de valor: “Seria, então, como dizer que Kierkegaard o é também, quando é cada vez mais estudado e reverenciado na academia e fora dela, tal qual sua obra traduzida, lida e relida (como neste potente ciclo de conferências luminares da Academia Brasileira de Letras), sempre mais intensa e extensivamente”.

Não é possível continuar escrevendo sobre a obra de Ernani Reichmann sem recorrer a outro de seus admiradores abalizados, o poeta e prosador curitibano João Manuel Simões, homem de saber literário enciclopédico e profundo conhecedor do que adequadamente se pode denominar “reichmaniana”.

No volume Palestras&ensaios sobre autores de língua portuguesa, que o Instituto Memória editou em 2010, além do opúsculo dedicado exclusivamente ao autor de O instante, no texto Ernani Reichmann, passageiro do absoluto, Simões fez uma previsão: “ER escreve no presente com a consciência de que está escrevendo para o futuro”, identificando nessa vocação “um sentido de missão na sua atividade titânica”.

Simões propõe a seus leitores uma passagem de olhos, mesmo descuidada, sobre o cenário filosófico brasileiro e acerta ao afirmar que “veremos que ER se destaca, à maneira de um Himalaia solitário” em meio a obras tão diversas em quantidade e qualidade, como as de Farias Brito e Tobias Barreto, Jackson de Figueiredo e Leonel Franca, Ivan Lins e Vieira Pinto, Miguel Reale e Vicente Ferreira da Silva, Pontes de Miranda e Alceu Amoroso Lima, Caio Prado Junior e Luiz Washington Vita”. A conclusão de Simões é impregnada de uma certeza que brota não da mera empolgação, ele que também dedicou grande parte do tempo à expressão literária: “Não há dúvida que nenhuma possui a dimensão e o valor da obra do arquiteto da Angústia subjugada”.

Em contexto tão amplo e fértil não seria pretensão descabida atribuir à obra de Ernani Reichmann o julgamento do crítico Harold Bloom, naquilo que parece ser a definição mais autêntica de James Joyce: “A filosofia só interessava a Joyce na medida em que podia contribuir para seu arsenal de palavras”.

Mais do que a busca de palavras, estou convencido, Reichmann perseguia (e conseguiu) o aprimoramento do pensar, a expansão da abrangência intelectual e a forma absoluta de se fazer entender num mundo tormentoso como fora o de seu mestre Soren Kierkegaard.

“Na verdade” prosseguiu Simões, “ele está edificando uma daquelas raras obras contemporâneas que podem aspirar a uma nítida futuridade. A obra reichmaniana tem horizontes largos pela frente. Dispõe de perspectivas ilimitadas. E da mesma forma que um poeta da envergadura de Fernando Pessoa, desaparecido em 1935, precisou de duas ou três décadas para ser (re)conhecido como um dos grandes poetas do século, é previsível que com ER acontecerá provavelmente a mesma coisa. Muito embora, aos sessenta anos de idade, com sua invejável juventude interior, o mestre possa – e deva – esperar mais uma ou duas décadas de fecundo labor intelectual, só na primeira metade do século XXI a sua obra virá a gozar da admiração, do respeito (e da compreensão) a que hoje mesmo faz jus”.

E o próprio João Manuel Simões, com uma perspicácia que viaja na mesma cadência do tempo, adicionava um brilho a mais em seu vaticínio: “Não quer isso dizer que até lá o seu valor aumente: apenas terá melhorado a capacidade de análise dos eventuais hermeneutas reichmanianos. Dizia Murilo Mendes, a propósito da Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, que esse poema, pela sua grandeza e complexidade, exigia o trabalho analítico de equipes de exegetas. Reivindico para a obra de ER – incomparavelmente mais grandiosa, mais rica e mais complexa do que a Invenção – o mesmo tratamento”.

E lamentava a existência de pequena quantidade de curitibanos que, à época, sabiam que “nas ruas e nas praças, nos labirintos e nas encruzilhadas de um quotidiano banal, incolor, se movimenta uma admirável figura humana que, à semelhança do Antero queiroziano, é um gênio, e, talvez, um santo”.

A dimensão do corpus literário laboriosamente produzido por Ernani Reichmann – dezenas de milhares de páginas – além do “alto valor literário e filosófico é única dentro das fronteiras da língua portuguesa”, repontou Simões ao adiantar que “embora de outra natureza, em termos formais, conteudísticos e estruturais, ela tem qualquer coisa de roman fleuve (à maneira de Balzac, Proust, Rolland, Martin Du Gard, Thomas Mann ou Cholokhov)”.

Simões lembra que Reichmann não escrevia romances, embora tenha antecipado uma judiciosa tese sobre a obra do biógrafo de Soren Kierkegaard: “Não será ela, porém, um tipo sui generis de ficção, onde o pensamento puro substitui a ação e onde a tessitura narrativa se metamorfoseia em discurso? Penso, salvo melhor juízo, que a monumental obra do mestre paranaense participa, a um só tempo, triplicemente, do ficcional, do filosófico e do poético. Não chega a ser, contudo, com exclusividade, filosofia, poesia ou ficção: é as três coisas, simultaneamente. Estaríamos, assim, em face de um novo gênio literário? Talvez? Por que não? Acima de tudo, ER é um pensador – e pensador cristão – que se exprime literariamente. Como Nietzsche e Platão”.

Para João Manuel, que muito provavelmente teve a grata felicidade de conviver com o mestre, Ernani não foi apenas um mero conhecedor da obra do pensador nórdico, mas “um novo Kierkegaard, talvez mais importante que o dinamarquês, do qual é uma versão corrigida e aumentada. Dotado de outro instrumental linguístico. De outra cosmovisão. Situado em outro meio geográfico, histórico e cultural. Com outro temperamento, outra psique, outras motivações. Outra postura existencial. Outras idiossincrasias. E uma cultura mais abrangente e ampla”. Mas, ainda a espera de seus proficientes exegetas, infelizmente.

Fica, portanto, a reivindicação do poeta nascido em Mortágua (Portugal), que veio ao Brasil desbravar seu próprio caminho de vate cuja “multiplicidade psicológica e requintada agudeza de expressão lembra Fernando Pessoa”. Um criador desse porte, assim saudado por Tristão de Athayde, uma das inteligências mais aclamadas desse país, na verdadeira acepção do termo, tem autoridade para reclamar a atenção especial exigida pela genialidade criativa de Ernani Reichmann.

Com a palavra as universidades, a academia, as bibliotecas e associações culturais.

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