8:40Meu pai

Meu pai tinha medo do mundo, mas o mundo estava dentro dele. Meu pai era um encouraçado que navegou a partir do porto do sítio São José, em Palmeira dos Índios, Alagoas. Meu pai primeiro aportou em Botafogo, Rio de Janeiro, numa viagem equivalente a ir a Marte para um menino semi-analfabeto. Meu pai depois foi ajudar a construir São Paulo como operário da indústria metalúrgica. Nessa altura ele já tinha encontrado o porto seguro da minha mãe, a Josefa, que nasceu no mesmo dia e no mesmo ano e vizinha de sítio. Eles começaram a namorar no Rio, foram casar na terra deles. Eu e meu irmão nascemos na Vila Alpina, na Zona Leste de São Paulo. Meu pai e minha mãe nos criaram como aprenderam. Meu pai tinha medo e se fechava no mutismo dele. O olhar era frio e depois eu fiquei olhando as fotos e concordei com alguém que disse ele ter traços do Clint Eastwood. O olhar era frio e metia medo. Meu pai era um anjo carinhoso por dentro e isso eu só descobri muitos e muitos anos depois. Porque consegui chegar perto e entendi porque ele era daquele jeito. Meu pai me deu tudo que um ser humano pode receber de um pai para seguir viagem. Minha sorte foi ter visto o carinho que ele tinha dentro dele e não sabia externar porque ele não sabia como. Meu pai não deixou eu morrer. Meu pai não me abandonou. Meu pai me colocou na escola. Um dia eu vi meu pai chorar e não entendi por que. Eu já tinha 20 anos e tive de sair de casa para fazer um estágio de um mês e meio numa cidade não muito distante. Imagino que ele achou que iria me perder. Meu pai apenas disse para eu pensar bem quando resolvi casar. Só isso. Eu era uma criança também fechada, com medo e achei este caminho para navegar pela vida. Oito anos depois, quando ele e minha mãe já tinham voltado para Alagoas, eu contei que tinha me separado. Ele apenas disse “não falei?”. Meu pai era santista, e sofria ouvindo no rádio os jogos do time de Pelé. Meu pai nunca foi ver Pelé no Pacaembu. O caminho que ele conhecia era de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Ele tinha o mesmo medo que herdei e ainda tenho resquícios. Meu pai nunca teve um carro, nunca passeou, nunca foi a restaurante, mesmo quando tinha dinheiro. Ele cuidava das notas que ganhava com trabalho. Fez uma caixinha de madeira onde guardava. Não tinha conta em banco. Foi assim que virou comerciante. Meu pai passou 20 anos sem beber. Eu não sabia que ele era alcoólatra. Meu pai era duro na queda. Um dia voltou a beber – e quase se perdeu. Eu e meu irmão, o artista Ricardo Silva, somos alcoólatras. Herdamos também a capacidade de segurar o tranco. Por isso estamos vivos. Meu pai contraiu aquela doença degenerativa e ficou com os membros inferiores paralisados e mortos. Ele nunca se conformou. Sempre achou que um dia voltaria a andar. Era isso que fazia depois que voltou a Palmeira dos Índios. Ia da casa na cidade para o sítio que herdou dos pais dele e que agora é meu e de meu irmão. Um dia, na caminhada, uma perna falhou. Depois parou tudo, apesar dos tratamentos que envolveram até um estágio em Campinas, onde moram o irmão dele, o Manoel, e a irmã da minha mãe, a Antonia. Pois é, dois irmãos casados com duas irmãs. Meu pai ficou assim e viu minha mãe morrer de câncer. Ele chorou tudo que não chorou a vida inteira ao lado do caixão que estava na sala. Quatro anos depois ele se foi. Eu e meu irmão ficamos com ele uma semana no hospital. Meu irmão cuidou dele durante dez anos. Ele não conseguia agradecer isso. Ricardo às vezes chorava escondido por causa disso. Eu pensava nas dores dos dois, aqui de longe. Meu pai fez isso pouco antes de morrer. Falou pouco. Num dos momentos de lucidez, esticou o bração e a mão de dedos longos bateu no peito do filho mais novo. Ele disse: “Esse é um grande menino”. Vi meu pai nu na pedra do hospital. Fiz a barba dele e fiquei conversando com ele. Um olho estava aberto. Sem vida, mas de um azul claro e cristalino. Eu consegui beijar meu pai depois de quase ter morrido com as drogas. Tinha quarenta anos e sempre digo que essa é uma das melhores coisas da minha vida. Anos depois, numa das visitas ao Nordeste, ele me deu um beijo, espontaneamente. Foi o único em toda nossa existência, mas ali ele estava selado nosso grande amor, esse que tento passar para meus filhos, netos dele.

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9 ideias sobre “Meu pai

  1. Clint Eastwood

    Hoje choro lágrimas copiosas porque não “me aproveitei” da companhia do meu pai, e vou morrer chorando. Meu pai não só me deixou órfão dele, me deixou um buraco no coração impossível de preencher. Se não contasse com o amor dos meus filhos preferiria morrer a viver, as ausências deixam lacunas na alma da gente que só Deus é capaz de preenche-las.

  2. amigo

    Poxa Zé!!!! que depoimento emocionante.!!!!!! Parabéns!!!!!! vc traz emoção nesse dia tão especial. Abraço! !!!!!!

  3. Sergio Mahlmann

    Zé Beto, tenho passado incólume pelo dia dos pais há muitos anos. Seu texto de hj, mais um entre os tantos e sensíveis que leio há anos, abriu o flanco, da saudade do pai que se foi e da frustração quanto ao filho que se perdeu pela vida…obrigado

  4. Carlos

    Te admiro como homem e pessoa sensibilizada com os ensinamentos da vida.
    Eu tive um trauma que me faz pensar todos os dias. Meu pai morreu e eu nunca disse: Pai, eu te amo.

  5. Sergio Silvestre

    Noto o ZB ansioso ao escrever esse belo relato e deve também dar um nó na garganta e com certeza virou pranto.
    Essa é a pratica de pessoas sensíveis,de almas nobres que põe pra fora o que sente e choram copiosamente diante do texto.
    Dizem que os filhos são do mundo e não dos Pais,essa frase é a mais estranha e doida que alguém pode fazer,os pais amam tanto seus filhos que preferem que Deus lhe tirem a vida primeiro para nunca ver seus filhos morrerem.

  6. Ivan Schmidt

    Caro ZB, nas entrelinhas de seu texto descobri que a frase do Euclides da Cunha ficaria muito melhor se ele tivesse escrito: “O sertanejo é antes de tudo um terno”… parabéns!

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