8:57Velha e nova “Doce Vida”

por Ruy Castro

Os herdeiros de Federico Fellini consentiram numa refilmagem de “A Doce Vida”. Por quê? Porque os produtores fizeram uma oferta que eles não conseguiram recusar. Mas para que refilmar “A Doce Vida”? A única maneira de ganhar dinheiro com cinema, hoje, é fazendo filmes para menores de 13 anos de idade mental. Por que se meter com um filme que, em seu tempo, tentou justamente falar a uma plateia adulta?

Ninguém teria o descaramento de reescrever “O Processo”, de Kafka, pintar de novo “Les Démoiselles d’Avignon”, de Picasso, ou remusicar a “Sinfonia nº 9”, de Mahler. Mas o cinema, por suas implicações industriais, é uma arte frágil. Qualquer filme pode ser refilmado, e o cinema americano já fez isto muitas vezes, até bem. Mas, para refazer “A Doce Vida”, o sujeito teria de ser um novo Fellini.

Ele não era um intelectual como Rossellini, um aristocrata como Visconti ou um cínico como De Sica. Era um provinciano de Rimini, com uma capacidade de fabulação superior à dos outros três. Tudo em “A Doce Vida” era inventado: os paparazzi (foi Fellini quem os inspirou), a Via Veneto (a do filme é de estúdio), a aura de Anita Ekberg (até então, uma coadjuvante de segunda em Hollywood) e a própria “dolce vita” –que, segundo os romanos de 1960, não existia. Só Fellini poderia ter inventado aquilo tudo– porque não se conformava com que não existisse.

Mas certos filmes são autoimunes. “Psicose”, de Hitchcock, sofreu três ou quatro execráveis continuações, com os mesmos cenários e o mesmo Tony Perkins. O Bates Motel quase se tornou uma franquia na vida real. E quem se lembra de tais filmes?

“A Doce Vida” não perderá nada com essa refilmagem. Ao contrário, ela fará com que as pessoas queiram assistir ao original. E, ao fazer isto, talvez descubram uma outra época, um outro cinema e um outro mundo.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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