6:43O milagre dos pés

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Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

O som escorre entre os prédios. Vem em minha direção. Estou às margens da avenida. A poucas quadras, desponta o pequeno exército colorido. O ruído atiça meus pés analfabetos. Não sei sambar, nem dançar a valsa preguiçosa no salão vazio. Sou péssimo quando alguma música tenta, de maneira desesperada, tirar-me do estático lugar onde apoio o corpo magro e desajeitado. Vim ao carnaval pelas mãos de uma namorada. A bateria se aproxima na penumbra da noite de fevereiro. Tudo é muito colorido. O daltonismo e a falta de sincronia com o som da cuíca me transformam num intruso. De repente, a surpresa.

Ele surge em meio à rala escola de samba. Está elegantemente trajado. Corteja uma mulata de vestido de plumas azuis (ou verdes, não sei). Faz-lhe a reverência do pequeno vassalo diante da rainha. Rodopia com adereços espetados na roupa cuja explosão cromática me cega. Usa chapéu e um pequeno bastão na mão direita. Como seus pés flutuam no piche esburacado do asfalto! Ambos sorriem muito. Os dentes brancos no rosto negro. O mestre-sala e a porta-bandeira.

Quando se aproximam da esquina, o susto. Sim, é ele — o menino tímido de canelas finas que nos encanta com dribles improváveis na várzea do Pilarzinho. Está diante de mim. Talvez me reconheça. Sorri ainda mais. Seduz com volúpia sua rainha. O público aplaude. Estático, vejo o casal se afastar em direção ao fim da avenida. Logo, o desfile vira uma réstia sob a iluminação improvisada. As silhuetas coloridas desaparecem. Permaneço imóvel na calçada de petit-pavé. Meus pés são incapazes de inventar um milagre.

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