6:59Deuses e monstros

por Yuri Vasconcelos Silva 

Ele usava óculos de armaduras grossas e formato circular. Parou de traçar seus desenhos e se voltou para o colega:

– Acho que consegui. Veja. Imaginei percorrer este caminho composto por placas flutuantes no desenvolver telúrico da topografia, contrapondo à experiência vivida durante o trajeto no caos urbano. Como bem colocou Baudrillard ou mesmo Sartre, é sempre válido questionar se a transição entre o mundo referenciado e o particular seria mais efetiva através da suave descoberta ou o dramático choque.

O esguio e alto colega japonês, cuidadosamente desarrumado, responde:

– Interessante. Eisenstein teria feito esta mesma escolha, se fosse uma narrativa cinematográfica. Penso que o espaço seguinte deveria sugerir um devaneio onírico, porque todo o resto pede isso. O entorno, o trajeto, o ritmo e a própria declividade do terreno que, como no buraco em que Alice cai, cria uma tensão crescente que deve chegar ao clímax bem ali. Como no primeiro ato de Tristão e Isolda de Wagner, o fim deve ser a liberação das amarras que ligam as pessoas à realidade anterior. A casa será a expressão última da liberdade individual irrestrita.

Um senhor que estava naquele ateliê de arquitetura fazendo reparos no ar condicionado, do alto de sua escada e seus sessenta e poucos anos, decide entrar na conversa:

– Isso tudo é muito interessante, mas a verdade é que nada disso que discutem importa no final das contas.

Com ares de indignação, o arquiteto de óculos interrompe o operário:

– Com licença, mas estamos tentando trabalhar aqui.

Seu colega nipônico o contradiz, pede atenção ao homem sobre a escada.

– Eu sou um técnico, porque gosto de ser objetivo. Olhando vocês trabalharem o dia todo não pude deixar de enumerar alguns pontos falhos na maneira em que exercem seu ofício:

Primeiro. Toda esta discussão filosófica e embasamento artístico pode até fazer parte do seu processo de trabalho. Mas o resultado final, estas casas, prédios e tudo mais, não são tão excepcionais ou impressionantes como o discurso pretendia. Arquitetura não depende apenas de retórica artística. Ela fatalmente encontrará as várias realidades. A técnica, financeira, o mundo material e o cliente, que tem sua própria bagagem de referências e que paga o seu salário. Vocês são subordinados a este mundo real, onde as coisas realmente acontecem. Todos os devaneios artísticos morrem na casca.

Segundo. A linguagem que utilizam serve apenas para afastá-los ainda mais das pessoas comuns para quem projetam. Eu não entendo se isto serve para legitimar o acesso a uma suposta classe elevada de produção e compreensão da arte, os intelectuais, ou se de fato acreditam que há um propósito maior em ler o mundo desta maneira. O que se assemelharia muito a uma religião. Tal qual a fé, o que propõem muitas vezes não pode ser experimentado ou provado sob uma perspectiva lógica. São apenas especulações que podem ou não dar certo. Para uma tela, uma escultura e até mesmo um filme, este risco pode ser tomado pelo artista. Para um edifício, feito para abrigar as pessoas de forma confortável e segura, não há margens para erros. Principalmente por se tratar de uma realização muito cara e permanente.

Terceiro. O ego talvez seja a origem destes problemas. Vejo que é bastante comum arquitetos participarem de um círculo de críticos e prestígios, se identificando em tendências, escolas. Buscam a autorreferência, encontrar uma posição onde se identifique e seja admirado por isso. Os “ismos” são os mapas dos arquitetos. Romantismo, modernismo, pós-modernismo, brutalismo. O problema é que buscam mais reforçar a própria imagem do que a do trabalho realizado. É comum ver arquitetos sorridentes e bem vestidos em fotografias de revistas e jornais, mais evidenciados do que seus feitos. Elevar a autoimportância a tal patamar é perigoso para a arquitetura e também para a pessoa, que poderá sofrer por ter fundamentado importante parte de sua vida em uma estrutura frágil, a imagem.

Quarto. Tanta conversa, discussão  e referências na criação de cada obra parece ser exagero. Dificilmente o inédito será criado. Há muito tempo que nada de novo surge em qualquer campo artístico. Pelo contrário, a única fonte de inovações que tem sido constante na história da civilização é a evolução tecnológica, que se baseia na metodologia científica. Em arquitetura e todas as outras formas de arte, vale a máxima de que “tudo já foi dito”.

Depois de um silêncio em que todos se entreolharam, o arquiteto com óculos redondos se pronuncia:

– Bem. Eu passei anos na faculdade e pós, li os melhores livros, fui a exposições icônicas no MOMA, Prado, Tate, Guggenheim. Viajei pra toda parte do mundo. Tenho amigos artistas, galeristas, fotógrafos, cineastas, dançarinos, escritores. Estou imerso no mundo artístico. Então um senhor que veio consertar meu ar condicionado e não me conhece, acha que estou fazendo a coisa toda errada? Ra! Só por curiosidade, o que você poderia me sugerir, para eu tomar um rumo?

Enquanto o arquiteto argumenta, o senhor volta a consertar o aparelho. Responde:

– Seja simples.

O ar condicionado volta a funcionar, soltando um vapor residual branco e frio. O senhor pega sua escada e some na névoa.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

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