6:49Escrever como se fosse outro

por Ivan Schmidt

Nascido em Bruxelas (Bélgica) de pais argentinos em 1914 e morto em Paris em 1984, onde viveu mais de 30 anos, caso tivesse resistido bravamente em sua residência na Terra, para usar uma expressão de Pablo Neruda que Julio Cortázar tanto amava, estaria hoje com 101 anos, a bem dizer, uma idade que pouquíssimas pessoas no planeta conseguiram alcançar.

As anotações que se seguem têm sua razão de ser na leitura de Escrevo desde um interstício, a ficção de Julio Cortázar, o mais recente livro do ensaísta Jayro Schmidt, meu irmão, lançado no final do ano passado pela Fundação Catarinense de Cultura Edições (Avenida Gov. Irineu Bornhausen, 5.600, Florianópolis, SC).

O livro apareceu na esteira das muitas comemorações em torno do centenário de nascimento do autor de O jogo da amarelinha, Todos os fogos o fogo e Os prêmios, entre outras obras-primas que tomaram praticamente toda a vida daquele que seria aclamado como um dos fundadores e responsáveis pela explosão da literatura fantástica na América Latina e no mundo.

Ensaios, novelas (a definição de romance no idioma espanhol), poemas e crítica literária perfazem o labirinto devassado por Cortázar, que escrevia “desde um interstício” segundo sua própria inventividade. Desses desvãos imprevisíveis, onde raros encontrariam matéria em bruto para transformar em fino lavor, o homem que nasceu e viveu para escrever livros logrou extrair “figuras semânticas sutis que tiram o peso da gravidade em duplo sentido”, como escreveu Jayro para sinalizar que tais figuras “enunciam o sujeito com olhos na ponta dos dedos sem o pretendido pelos dogmáticos e sectários não importa de qual bandeira, para os quais tudo não passava de capricho, perversão, delírio”.

Não foi sem motivos, prosseguiu, que em “Buenos Aires surgiram consideráveis avanços na psicanálise”. A ironia quando bem colocada é sempre bem recebida e mesmo Cortázar, decerto, a teria apreciado.

Assim, incompreendido por muitos, mas idolatrado por uma legião de leitores não apenas na América Latina, na verdade, Cortázar começou a ser lido primeiramente pelo público europeu, a partir do percuciente ensaio de Jayro Schmidt, também ele um pensador que não se contenta em nadar no raso, percebe-se que “o entendimento de Cortázar da realidade pressupõe a passagem do suposto real para o ato de escrever com a revolução da palavra”, exatamente o instrumento que estabelece “correlações com realidades mais profundas que através dos possíveis ficcionais trouxe à superfície, na sequência da escrita, o reflexo da simultaneidade e, em muitos casos, o que mais nele foi combatido”.    

Em oportuno esclarecimento, Jayro nos diz que em nome da realidade concreta alguns autores “estão em uma circunferência, enquanto Cortázar e seus precursores fazem parte de uma constante mudança, de uma espiral”.

Conteúdo primordial da trama cortazariana “a literatura fantástica é a mais ficcional pela ênfase no sobrenatural, cuja extensão remonta ao gótico não necessariamente como conceito e sim como admissão de uma suprarrealidade que polariza imaginação e conhecimento”, escreveu o ensaísta. E assim “não havendo distinção entre uma coisa e outra, o que implica tomar a imaginação como o supremo conhecimento e vice-versa, a literatura fantástica separa-se das demais por se situar na indeterminação, fazendo da sorte a sua mais legítima alavanca, o que a aproxima das ciências exatas, que não por isso evitam as hipóteses”.

Em relação ao componente gótico, foi Cortázar quem escreveu nos meados do século passado (suponho), que essa intromissão não repelida desconcertava a crítica diante da quantidade de escritores rio-platenses “cuja obra se baseia em maior ou menor medida no fantástico, entendido numa acepção muito ampla que vai do sobrenatural ao misterioso, do aterrorizante ao insólito, e onde a presença do especificamente ‘gótico’ é com frequência perceptível”.

Os exemplos foram os escritos de Leopoldo Lugones, Horácio Quiroga, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo e Felisberto Hernandez, os mais notórios a fazer digressões entre o imponderável e o além.

No caso particular de Cortázar, descoberto por Borges, que editou sua primeira colaboração no magazine cultural Sur, criado e mantido durante muitos anos por Silvina Ocampo, o gótico era uma partícula inerente à própria vida. Tudo era gótico em sua infância, confessou.

“Minha casa, vista desde a perspectiva infantil, era também gótica, não pela arquitetura, mas pela acumulação de terrores que nasciam das coisas e das crenças, dos corredores escuros e da conversa dos adultos na sobremesa”, revelou Julio, que aos 12 anos escrevera um poema inspirado em O corvo, de Edgar Allan Poe.

Desde criança, voltando ao texto de Jayro, Cortázar foi circundado “pelo fantástico no que tem de assombroso, de inquietante ou de gótico e, de todos os autores que leu, foi Edgar Allan Poe quem mais o influenciou. Sem Ligeia e A queda da casa de Usher ele não teria adentrado em paragens do maravilhoso com a atmosfera de estremecimento, porém sem os artifícios literários ao encarar o outro lado com naturalidade”.

Essa dívida literária, vamos chamar dessa forma, foi paga com juros e correção monetária anos depois pelo argentino nos belos ensaios que escreveu em atenção à obra de Poe, sobre ela debruçando-se como um taxidermista sequioso de encontrar pormenores (ou seriam interstícios?), imperceptíveis ao mortal comum.

Um desses ensaios encontra-se em Valise de cronópio (Editora Perspectiva, SP, 1993), livro traduzido por Davi Arrigucci Junior e João Alexandre Barbosa. O primeiro é um dos críticos brasileiros mais respeitados da obra de Cortázar, cuja amplitude de conhecimento da respectiva produção está contida em O escorpião encalacrado publicado pela mesma editora.

Cortázar abusa do imaginário para vislumbrar Poe diante de uma folha em branco sobre uma mesa, que quase sempre não era sua, dispondo-se a escrever. E pergunta: “Qual é o processo, o silencioso ciclone do ato literário, cujo vórtice está na pena que Poe apóia neste instante sobre a página?” A pergunta fica sem resposta, mas Cortázar intui de forma insuspeita: “O monstruoso está de imediato aí, presente e inequívoco. A noção de anormalidade se destaca com violência da totalidade de elementos que integram sua obra, seja poesia, sejam contos”.

A influência precoce de Byron nos escritos de Poe foi facilmente identificada por Cortázar, além do que “é evidente que os romances góticos alemães e ingleses, a poesia noturna francesa e germânica, deixaram marcas num temperamento avidamente disposto a compartilhar essa atitude romântica cheia de contradições, na qual, porém, as notas dominantes são o cultivo da solidão por inadaptação e a busca de absolutos”.

Outro ídolo e mestre do escritor argentino foi Jorge Luis Borges, cuja primeira lição assimilada foi que “escrever é descobrir o que não se deve dizer”. O choque que Borges causou sobre o intelectual que então despontava na geografia literária do Rio da Prata foi assim resumido: “Eu tinha levado muitos choques, mas sempre provocados por escritores estrangeiros, franceses, ingleses, que não tinham por que nem como repercutir em meu idioma”, transcreveu Jayro.

Sem se tornar um imitador de Borges, entretanto, Cortázar buscou seus próprios caminhos que também se bifurcaram, convencido de que deveria falar de temas e “mudar a linguagem ao desviar-se de acanhados usos da cultura, da vida, da palavra, exasperado que estava com a separação que se fazia de realidade e ficção”.

Cada livro de Cortázar e são muitos “tem atmosfera própria, que faz parte de um fluxo de signos que varia conforme o que está sendo narrado”, argumentou Jayro ao lembrar que num escritor dessa formação “o ajuste das palavras com as expressões exigiu determinadas linguagens com ferramentas adequadas às finalidades que foram ditadas pelas expressividades. Em consequência, em seus contos há uma osmose tão completa que não se sabe onde começa uma coisa e termina a outra”.

A ficção de Cortázar é o viver do escrever, enxergou bem o ensaísta catarinense que já nos havia brindado com alentados estudos sobre a obra de João Guimarães Rosa e Paulo Leminski. Como mago da linguagem, o rio-platense traçou sua escrita como “reflexo de reflexo que as palavras precisam de tempo para dizer”.

Nesse caso, foi sábio e providencial deixar que rolassem 30 anos da morte do artista que produziu O jogo da amarelinha (Rayuela), sua mais expressiva síntese criativa, para que se pudesse escrever com o necessário distanciamento e a profundidade que é desconhecida nas resenhas paridas mal o livro chega às livrarias e até antes.

Enfim, reler Cortázar pelos olhos de Jayro Schmidt é experimentar a emoção de ouvir um jazz clássico, que ”pode sair de si mesmo sem nunca deixar de ser jazz”.

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