18:04As drogas, a dependência e a falta de conhecimento

O artigo “Quem usa drogas deveria sair do armário (ou seria abrir a gaveta?), de J.P. Cuenca, publicado hoje na Folha de S.Paulo como complemento da reportagem sobre o aumento de internações por causa do uso de maconha sintética nos EUA, é muito bom para o debate. Mas lá pelas tantas o escrito comete o mesmo erro comum a quem não tem informação sobre o assunto. Ele revela que fuma ocasionalmente maconha, haxixe, skank e que foi mais assíduo com MDMA, a sua droga preferida e que usa a cada duas ou três semanas. Aí toca no ponto: “…mas nenhuma delas me causou tanto dano físico e emocional quanto o álcool, a única droga legal que consumo. A única, aliás, que me gerou dependência”. Bem, esta última frase é a questão. Dependência é uma doença que vale para qualquer droga. O signatário, que usou maconha, álcool e cocaína em períodos distintos, com três internamentos (um pelo álcool, dois pela cocaína), sempre que tem oportunidade de falar a respeito da sua experiência com as substâncias faz questão de ressaltar “que é dependente principalmente das drogas que nunca experimentou”. Se parou totalmente com o álcool em 1990, substituiu esta droga de preferência pela cocaína – e agora está há 20 anos em sobriedade, ou seja, consumindo água – de preferência com gás. Cuenca, se parar apenas com o álcool, provavelmente continuará tendo problemas sérios com uma  todas as outras drogas que usa. É o que acontece normalmente.

O texto de Cuenca:

Quem usa drogas deveria sair do armário (ou seria abrir a gaveta?)

J. P. CUENCACOLUNISTA DA FOLHA

Está dicionarizado em inglês o termo “outing” — o ato de explanar a orientação sexual de terceiros, normalmente celebridades e políticos até então dentro do armário.

O termo é relativamente novo e o tema, polêmico. Ativistas costumam justificar a evasão da privacidade alheia por combater a hipocrisia num mundo onde gays são alvo de preconceito e violência. Nos Estados Unidos e Inglaterra, congressistas que votavam contra direitos civis para os homossexuais já foram arrancados à força do armário. É comum que revejam suas posições.

Penso que deveríamos começar a pensar num outro tipo de “outing” que, a meu ver, é tão ou mais urgente que o primeiro. Abrir as portas do armário (ou seria a gaveta?) das drogas.

É fato que seres humanos consomem drogas desde a Idade da Pedra. É fato que a recente política de repressão falhou no mundo inteiro. Trata-se de uma das grandes tragédias do século passado que se arrasta por este: o custo social do combate armado às drogas é infinitamente superior ao custo de lidar com o uso regulamentado e legalizado dessas substâncias. A guerra não apenas não reduziu o número de usuários como matou mais do que qualquer droga seria capaz.

A militarização de um problema de saúde pública não interessa ao conjunto da sociedade e sim à indústria bélica e a vendedores de “segurança” institucional. Vivemos reféns de uma legislação que falha em resolver o problema e, no Brasil, alimenta uma guerra que elimina sistematicamente negros e pobres nas periferias. Para muita gente, essa letalidade deve fazer sentido — o tal do “gozo social”, citando o Hélio Oiticica.

Conservadores não liberais costumam dizer que “o playboy do asfalto financia a bala do fuzil do traficante com o seu baseadinho”. Essa falácia argumentativa desconsidera que o tráfico armado só existe por causa do proibicionismo e ignora as íntimas conexões financeiras entre respeitáveis lavadores de dinheiro, políticos, contrabandistas de armas, policiais, bancos e o tráfico. No fim das contas, quem ajuda a comprar a arma do miserável varejista na ponta do comércio é o voto na urna, via lobby da bala. A depender do caso, o dinheiro vai parar numa conta numerada do HSBC na Suíça. No morro apenas sobram os mortos, normalmente anônimos como os donos da grana “” é a única coisa que têm em comum.

A grande maioria dos leitores deste texto não vive sob o estado de exceção legitimizado pela guerra às drogas e não corre o risco diário de ver o filho baleado por policiais ou traficantes. Assim fica confortável terceirizar o problema e dormir com ossadas embaixo da cama. Falta envolvimento e conscientização sobre o que é mais letal e nocivo quando se trata do tema das drogas: a própria política proibicionista.

A ideia de demonizar essas substâncias e marginalizar seus usuários é um dos pilares dessa política. Quanto mais usuários saírem do armário, mais a sociedade terá que encarar o uso de drogas recreativas com normalidade “” ou ao menos como um problema cuja solução passa longe do fuzil e da prisão.

Imagine uma campanha que revele às senhorinhas eleitoras de Telhada ou Bolsonaro que seus ídolos, galãs e mocinhas das novelas, são maconheiros –e que tudo bem, levam suas vidas e decoram os textos normalmente. Ou o poder que teriam declarações de compositores, gênios da música brasileira e ídolos populares ao admitir que nas últimas décadas ingeriram consideráveis doses de cocaína e todo tipo de bolinhas?

Nos últimos dez anos perdi a conta de quantas estrelas de TV, músicos consagrados, escritores, dramaturgos, jornalistas, editores, galãs de novela, celebridades e capas de revista vi fumar unzinho ou esticar uma carreira em festinhas de apartamento ou camarins de shows. Não sou do tipo de escritor que confraterniza com políticos e autoridades, mas relatos dizem que não é muito diferente.

É muito fácil conseguir o que se quer nas esquinas e salões de qualquer cidade brasileira. Sou um fumante ocasional de maconha, skank e haxixe. Já fui mais assíduo com MDMA, minha droga preferida. Hoje tento diminuir para uma vez a cada duas ou três semanas porque a qualidade anda cada vez pior no Brasil. Aqui também é complicado encontrar bons opiáceos, ácidos e cogumelos, que só consigo no exterior.

Reconheço e assumo o risco dessas substâncias, a irresponsabilidade de comprá-las sem bula, mas nenhuma delas jamais me causou tanto dano físico e emocional quanto o álcool, a única droga legal que consumo. A única, aliás, que me gerou dependência.

O debate é urgente. Corro o risco de soar ingênuo ao esperar que figuras públicas abram suas gavetas advogando pelo fim de um proibicionismo que mata muito mais que qualquer droga.

Afinal, o meio artístico brasileiro hoje é um dos mais dóceis do planeta quando trata-se de desafiar o status quo — talvez por covardia pura e simples de contrariar quem emite seus contracheques e quem pode lhes oferecer um edital. Que tentem dormir tranquilos: para quem tem voz nesse país, ficar em silêncio é sujar as mãos.

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Uma ideia sobre “As drogas, a dependência e a falta de conhecimento

  1. Professor Xavier

    O tal Cuenca faz parte daquela turma para quem “queimar um de vez em quando não faz mal a ninguém”. É claro, o tigrão só pega metrô vazio, tem emprego e conta com um bom plano de médico. Aí se a coisa engrossar ele se interna e tudo bem, volta a ficar na boa. Faço minhas as palavras do blogueiro, nunca fumei, nunca queimei e nem pretendo começar. Também não sou hipócrita e berro contra a bebida alcoólica, a “única droga legalizada”. Nunca fiz apologia de droga de qualquer tipo , nem das legalizadas. Quem defende o uso”recreativo da maconha” é porque não sabe sobre o que está falando. Uma droga leva a outra, e todas elas levam ao vício.

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