10:51O Centro Cívico e o urbanismo do controle

por Yuri Vasconcelos Silva

A cidade antiga, com suas estreitas ruas pavimentadas em pedras. Casas, casarões e armazéns todos alinhados nos limites frontais  onde os passeios começam. A massa multicolorida, uniforme e na mesma altura, reverenciam a rua, a cidade e as pessoas que caminham. De vez em quando, nas estreitas e sinuosas vias por onde apenas um carro em largura consegue passar, o caminho se alarga em uma bolha de convivência e reunião, revelando a água corrente na forma de uma fonte ou bebedouro para cavalos em seu ponto focal. É um largo ou uma praça, muitas vezes sem qualquer vegetação, mas aconchegante com seus bancos, suas vistas e o sol que consegue varrer este pedaço da velha cidade. Tanto na via quanto na praça, centenas de portas se abrem de forma generosa em casas com varandas ou comércios para expor secos e molhados.

É possível visualizar este modelo genérico de urbanismo espontâneo em cidades brasileiras coloniais, cidades medievais e contemporâneas favelas. Estes modelos apresentam a qualidade de um espaço mais humano e intimista, propício ao encontro de seus moradores. Mas do ponto de vista militar, este urbanismo é o pesadelo para o governo que teme seu próprio povo.

É um consenso entre aqueles que vivem da guerra, ou expectativa desta, que um dos piores cenários possíveis para uma batalha é em um local com difícil acesso, com meandros e recantos onde o inimigo possa se esconder, observar, atacar ou facilmente fugir. Ruas estreitas impossibilitam a entrada de equipamentos blindados, oferecem o risco de emboscadas. Especialmente se o território, como uma cidade tortuosa, é bem conhecida pelo suposto inimigo. Trata-se da tática de guerrilha, que faz os pêlos da nuca de qualquer comandante se eriçar só de ouvir o termo.

Entre uma série de características positivas e negativas, o urbanismo modernista propõe em um de seus congressos pós-guerra (CIAM), o conceito do “Coração da Cidade”, o lugar onde deveriam estar o governo em harmonia com as funções que representam a vida social e comunitária. O Centro Cívico foi planejado neste espírito, deveria ser a sala de estar não apenas de Curitiba, mas do estado. Seus edifícios modernistas são implantados em “U” na grande quadra, de modo a se voltar e abraçar o eixo da larga avenida Cândido de Abreu, que conecta o centro administrativo ao Ponto Zero da cidade, a Praça Tiradentes. Porém, o projeto pecou ao não introduzir na área edifícios voltados ao espírito da comunidade, como museus, cinemas, teatro, esportes. Aparentemente, não couberam no Coração. Assim, quem passa pela praça do Centro Cívico, percebe a clara segregação imposta pela monumentalidade na organização espacial dos edifícios e símbolos de estado. Se por um lado, a praça oferece um espaço democrático às manifestações da população, por outro, ela também deixa claro quem é que manda naquele pedaço. As avenidas que acessam o local, assim como a praça, oferecem a possibilidade de ações militares eficientes e rápidas. As ruas largas facilitam o deslocamento de infantaria blindada. A vastidão da praça propicia a observação das movimentações do inimigo do alto, em edifícios governamentais do entorno ou a partir do céu. Não há rotas de fugas ou chance de emboscadas por parte do invasor, já que não existem edificações privadas no entorno imediato e o cerco por tropas elimina todas as possíveis rotas de fuga, se assim for desejado. O urbanismo modernista impossibilita a ação de guerrilha.

A ocupação da Praça Nossa Senhora de Salete para protestos no quintal do governador não é um ato de democracia. É, secretamente, uma arapuca planejada há mais de cinquenta anos. Não se trata da sala de estar da população. É um palco de espetáculos para os governantes assistirem de camarote as ordens dadas através de um telefonema.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

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Uma ideia sobre “O Centro Cívico e o urbanismo do controle

  1. leandro

    A postagem apresenta a realidade do que é o Centro Cívico e a descaracterização do projeto inicial. Dá para notar que o sentido de área exclusivamente pública foi deixado de lado a muito tempo, diria que desde a década de 60. Também posteriormente nem chegou a ser totalmente implantado o projeto de paisagismo de Burle Marx e dele restam algumas peças do verde e calçadas, como também poucas árvores do tipo acácias. Uma prova destes fatos é a altura dos edifícios que sobrepuseram até então os tais 40 metros balizados pelo IPPUC , tendo como referência o edifício “Vergínia”, na Avenida Candido de Abreu esquina com a Barão de Antonina, que era considerado o máximo do tal cone de aproximação do aeroporto Afonso Pena. A cidade cresceu, o Centro Cívico ficou espremido com moradias, escritório em sua maioria. Também diante dos fatos recentes deixou de ser cívico , pois de civismo falta muito para ter o direito de receber este nome.

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