16:14Mundo maluco

por João Pereira Coutinho

A maluqueira não existe. Pelo menos, muitos acreditam que não. Sei de alguns casos: gente que, na impossibilidade de me conhecer pessoalmente (o que derrotaria qualquer ceticismo clínico), consideram a doença mental uma frescura de gente ociosa. “No Brooklyn ninguém se suicidava”, dizia um personagem de Woody Allen. “Todo mundo era demasiado miserável para isso.” Touché.

Anos atrás, uma colega de jornal começou a sentir certa tristeza persistente. Com a tristeza, veio a insônia. Com a tristeza e a insônia, veio o desinteresse pelas coisas mundanas – trabalho, amigos, o simples ato de erguer o corpo de manhã e enfrentar o dia.

Tentei convencê-la: a procurar ajuda “especializada”, um eufemismo para designar os médicos e os terapeutas do sótão. Como já escrevi mil vezes nesta Folha, o cérebro é um órgão que também tem direito aos seus desarranjos. Como os pulmões, o fígado, até a pequena vesícula. Ninguém transforma problemas de vesícula em tabu social.

Sem sucesso: “problema mental”, no século 21, tem o mesmo estatuto que as possessões demoníacas durante a Idade Média: uma manifestação de “fraqueza” (e um símbolo de vergonha) que a minha colega tentou esconder com a garrafa. A odisseia dela terminou com uma tentativa (frustrada) de suicídio.

E se assim é com os indivíduos, que dizer dos governos? Mãos amigas fizeram chegar-me um ensaio notável que Thomas Insel, Pamela Collins e Steven Hyman, três autoridades na matéria, escreveram para a circunspecta “Foreign Affairs”. Intitula-se “Darkness Invisible” e deveria ser leitura profilática para políticos e doentes (uma redundância, eu sei). Tese deles?

O texto começa com nota otimista: a medicina evoluiu e as doenças contagiosas foram recuando dramaticamente da vida dos contemporâneos.

Mas nem tudo são boas notícias. Existem também as más – e, depois das más, as catastróficas.

Na primeira categoria, temos doenças não contagiosas, como as maleitas do coração ou a diabetes: entre 2010 e 2030, essas doenças crônicas vão ceifar US$ 46,7 trilhões ao PIB mundial. É muito?

Tudo depende, escrevem os autores: comparadas com as doenças mentais (sim, aquelas que não existem), o impacto financeiro e humano das doenças não contagiosas são brincadeira de crianças.

Números? De arrepiar: todos os anos, as doenças mentais custam US$ 2,5 trilhões aos bolsos do mundo. Essa despesa reparte-se entre os efeitos diretos da doença (como a despesa com os tratamentos) e os efeitos indiretos (como a perda de produtividade que a doença mental arrasta).

Em 2030, essa conta será de US$ 6 trilhões. Ou, como se lê no ensaio, mais do que a despesa conjunta da diabetes, das doenças cardíacas, oncológicas e respiratórias.

Perante esse cenário, qualquer pessoa com dois neurônios em funcionamento imaginaria que a saúde mental deveria ser a prioridade de qualquer sistema de saúde – nos países ricos e, mais importante ainda, nos países pobres, onde existe 1 psiquiatra para cada 1 milhão de habitantes.

Pessoas com dois neurônios em funcionamento normalmente não se encontram na política: a nível global, os governos tendem a devotar 3% do orçamento da saúde para os desarranjos do cérebro. Ao mesmo tempo, esses desarranjos são responsáveis por 20% dos gastos dos mesmos sistemas de saúde, até porque os problemas que começam no sótão costumam atacar outras partes do edifício.

No fundo, aqueles que vivem a doença mental com culpa e vergonha são o elo mais inocente de uma cegueira maior. E eu pergunto honestamente se os verdadeiros doentes não serão aqueles governantes que, confrontados com o tamanho do desastre, persistem em varrer a escuridão que cresce para debaixo do tapete.

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