11:13O dicionário de um apaixonado

por Ivan Schmidt

Saiu afinal em português pela Amarilys, que é um selo editorial da Manole (SP), um dos recentes livros do jornalista francês Gilles Lapouge – Dicionário dos apaixonados pelo Brasil – na tradução de Maria Idalina Ferreira Lopes e preciosas ilustrações de Alain Bouldouyre.

O livro saiu originalmente em 2011 pela editora Plon de Paris e agora está ao alcance do leitor brasileiro, de modo especial dos apreciadores do trabalho realizado por Lapouge, inicialmente na redação do jornal O Estado de S. Paulo e, ao longo de muitos anos como correspondente na capital francesa.

Lapouge é um dos derradeiros profissionais da imprensa a atuar como correspondente de um grande jornal, seguindo os parâmetros da escola clássica dessa especialidade somente encontrada (ou cultivada) por jornalistas calejados nas lides da profissão que escolheram e, muito mais pela profunda formação intelectual e humanista que assimilaram ao logo de décadas.

Nascido em 1923, portanto aos 92 anos de idade, Lapouge demonstra uma agilidade mental, um domínio dos fatos mais relevantes da política internacional, sobretudo do interminável conflito árabe-israelense, que tornam imperdíveis os artigos escritos para o jornal da família Mesquita, no qual começou a trabalhar nos anos 50 do século passado.

Confesso que esperei avidamente a publicação desse livro de Gilles Lapouge desde a leitura da notícia de seu lançamento na França, se não estou enganado no excelente suplemento semanal do jornal Valor Econômico. Conhecia desse autor os livros Equinociais e A missão das fronteiras, o primeiro contendo o magnífico relato da extensa viagem realizada pelo autor nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Infelizmente o livro foi publicado por uma editora de Campinas (SP) e, imagino, não teve a repercussão merecida entre o leitorado tupiniquim. O outro é um romance barroco que saiu pela Record (RJ), a meu ver, também sem causar maior impacto editorial.

Espero que aconteça exatamente o inverso com o Dicionário dos apaixonados pelo Brasil, do qual o mínimo que se pode dizer é que é a obra da maturidade de Gilles Lapouge, ou a reprodução de fatos armazenados por uma memória prodigiosa que presentemente nos lega a descrição enciclopédica duma relação intensamente amorosa entre o jornalista-escritor e o país que conhece e percorre há 60 anos.

Está aí um livro que todos os brasileiros com mais (ou menos) de 50 anos deveriam ler, por obrigação. Em primeiro lugar por trazer ao leitor a realidade nua e crua de um país tipicamente burlesco como era o nosso no começo da segunda metade do século 20, e por se tratar da visão afiada, muitas vezes irônica mas nunca desrespeitosa de europeu culto e sofisticado, aliás, rigoroso discípulo de tantos outros viajores estrangeiros que se aventuraram pelas terras de Pindorama.

Lapouge, pelo que percebi da leitura de parágrafos soltos dos assentamentos que vão de A a V, construiu uma obra informativa e ao mesmo tempo de intensa expressão literária, a exemplo da verve de Saint-Hilaire ou Richard Burton, sábios que também peregrinaram pelas lonjuras inóspitas de nosso país.

Para despertar a atenção (e o desejo) dos leitores que andam em busca de finos manjares e olimpicamente dispensam os arremedos literários que fluem em catadupa por esses tempos, com a devida licença do autor e da editora que lançou o fecundo dicionário que é também uma declaração de amor pelo Brasil, transcrevo linhas numinosas garimpadas aqui e ali nas 333 páginas que perfazem o volume.

Boto cor-de-rosa

Por mais amável que seja o boto é responsável por muitos dramas. Os homens da Amazônia sentem ciúmes dele. Assim que perdem de vista sua namorada ou esposa, eles compreendem que um boto passou por ali e que fez amor com ela em suas úmidas moradias.

Café

O café está, enfim, na Amazônia. Estamos em 1727. Ele começa a sua carreira. Durante meio século, limita-se à capitania do Pará, mas ele é insaciável e, como a Europa o aprecia cada vez mais e os cafezais destroem os solos, deve sempre sair em busca de novas terras. Ele corre em direção ao sul. Em 1761, está no Rio de Janeiro, primeiro em torno da Baía da Guanabara, depois no Vale do Paraíba, entre duas serras, a da Mantiqueira e a do Mar. A primeira economia cafeeira do país ocupa essa região durante um século. As superfícies cultivadas se estendem até por volta de 1860. Mas a mão de obra diminui e a destruição da Mata Atlântica resseca os solos. As formigas atacam, arruínam os campos. Enfim, em 1888, a Lei Áurea decreta a emancipação total de todos os escravos. Uma violenta crise atinge a mercadoria milagrosa.

Claude Lévi-Strauss

Um dia ele (Lévi-Strauss) me disse que, de tanto decifrar os mitos e as fábulas dos povos primitivos, tornara-se um homem do neolítico. Não era uma frase de efeito. Ainda mais extremista que seus colegas historiadores da Escola dos Anais, não era sobre as longas durações que ele se debruçava. Era sobre as durações intermináveis. A sua ciência preferida não era nem a filosofia, nem a história, nem a geografia, nem mesmo a antropologia. Era a geologia que recortava o tempo em largas fatias.

Éden

Essa América (a dos descobridores) assemelha-se ao início do mundo. Ela é rica em frutos, legumes, pássaros, animais estranhos, peixes brilhantes. Nas florestas incompreensíveis borboletas luxuosas fazem amor com flores nunca vistas. “O Brasil”, diz Vicente do Salvador “é mais bem fornecido em alimento do que as outras regiões do mundo, pois ali encontramos os de todos os outros países”. Os homens que ali vivem são belos e não conhecem a escrita. Falam a língua dos pássaros, dos cipós e das nuvens. É um sinal. Todo mundo sabe que os habitantes do Éden não precisam de um alfabeto para serem felizes e bons”.

Evangélicos

Por muito tempo, o Brasil foi o maior país católico do mundo, mas ele está cada vez menos ligado a essa religião. A Igreja de Roma cedeu muitas partes do mercado aos protestantes, primeiro aos luteranos que chegaram aqui com os colonos alemães no início do século XIX, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, ou em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, e mais tarde, no final do mesmo século, aos batistas, aos presbiterianos e aos metodistas.

Em 1970, novos atores se misturaram ao jogo. A grande invasão das seitas começava. O Evangelho se precipita sobre os corações brasileiros, destruindo tudo em seu caminho, menos o pequeno Jesus, a Santa Tereza do Menino Jesus, Santo Antonio de Pádua, alguns outros santos e as delícias do negócio.

Os evangélicos, com o apoio das seitas americanas, aproveitam-se. Agarram a oportunidade. Avançam sobre o Brasil. Os seus chefes têm uma ideia genial. Para atrair os milhões de católicos desiludidos, basta mudar de teologia. Essa da libertação é triste e empoeirada. É a teologia do pobre. Ela é posta de lado. Uma nova doutrina toma seu lugar: uma “teologia da prosperidade”, que é novinha em folha, otimista, gulosa e acessível a todos.

Imensidões

O Brasil é muito grande. E não lamenta o fato. Aproveita-se e acha que isso não é ruim. Ele é quinze vezes maior que a França e 10 mil vezes maior do que Luxemburgo; cobre a metade da América do Sul, abriga uma floresta tão grande quanto o céu e um rio igual a um oceano; é limitado por 11 mil quilômetros de fronteiras e tem 6 mil quilômetros de costa atlântica. É grande demais para o nosso olhar.

Tudo isso e muito mais está à sua disposição nas páginas escritas por Gilles Lapouge, que abre seus escritos com a irretorquível confissão de fé: “Amei por muito tempo o Brasil, e ainda o amo”.

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